Diversão e Arte

Como seria se Número zero, o delírio de Umberto Eco, se tornasse realidade?

Imagine se um magnata de mãos sujas quisesse criar um jornal - ou um blog, portal, serviço de alto-falante - para falar mal de desafetos e chantagear políticos e empresários? Ninguém ia acreditar

Paulo Pestana, Especial para o Correio
postado em 31/08/2015 16:05
A cada dia eu acho a ficção menos necessária. Quando era mais otimista, acreditava que a ficção era um escapismo fundamental para que pudéssemos fazer exercícios de imaginação, que nos fizesse viver eventos além da imaginação. O mundo onírico ao alcance de todos, realidades múltiplas, palpáveis (embora etéreas), viagens sem sair do lugar.

Mas aí começaram a exagerar. Acreditar em duendes é fácil; também é moleza crer em fadas, ogros e elfos de pernas de cabrito. Bruxas de verruga na ponta do nariz então nem se fala.

Assim como é verossímil imaginar Gollum se esgueirando pelo terreno pedregoso, à procura do anel de Sauron, ou Clark Kent espremido numa cabine de telefone para se livrar dos óculos e da gravata para sair voando. Tudo crível.

Eis o exagero: Umberto Eco criou o comendador Vimercate, sujeito oculto por trás da trama de Número zero, seu livro mais recente. Riquíssimo, mas insatisfeito com a fortuna que não abriu a ele os salões da elite italiana; para conseguir esse passaporte, o comendador teve a ideia de criar um jornal que publique histórias incômodas, sob medida para chantagear membros da elite de lá.

Nem o Doutor Silvana bolaria um ardil tão astucioso. Nem Lex Luthor! É um plano infalível, digno do Cebolinha, quando quer derrotar a Mônica. A história de Eco corre no ano da graça de 1992, numa Itália que enfrentava e caçava corruptos a partir da operação Mãos Limpas.

Imagine o leitor se a ação fosse transferida para o Brasil de 2015 e um magnata de mãos sujas quisesse criar um jornal ; ou um blog, portal, serviço de alto-falante ; para falar mal de desafetos e chantagear políticos e empresários? Ninguém ia acreditar, não é mesmo? Qual malfeitor urdiria uma malvadeza dessas? Ainda bem que vivemos no Brasil.

O delírio de Eco vai além: o comendador contrata um sujeito sem escrúpulos, De Samis, para tocar a empreitada. E este sai convocando um grupo disfuncional para participar da aventura, incluindo um paranoico, uma repórter de fofocas e um fracassado absoluto, que ficará responsável por escrever um livro contando a história por trás da criação do jornal ; não está claro no texto, mas poderia se chamar algo como A arte de fazer um jornal diário. Dá para levar a sério?

O narrador ; exatamente o fracassado ; derrama uma série de afirmações que cabem abaixo do Equador: ;Estamos nos acostumando a perder o senso de vergonha;, ;as pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas;, ;o mafioso oficialmente no Parlamento;, e por aí vamos.

Eco ambientou o romance em 1992, mas engatilha a reflexão nos anos posteriores, quando a Itália via a ascensão de Berlusconi, o Jason da política internacional (não adianta enterrar que ele sai da cova). Ou seja: não adiantou muito limpar as mãos, a sujeira tomou outra forma e voltou.

Voltemos à Terra Brasilis. Constranger pessoas com notícias, ainda que falsas? O brasileiro pode não saber fazer ; ou mesmo pilotar ; uma Ferrari, mas nesse ponto somos mais sabidos que os italianos. Quem acreditaria no jornal ; ou blog, ou portal, ou serviço de autofalante ; de um malfeitor? Ainda bem que é só ficção.

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