Diversão e Arte

Ingrid Betancourt estreia na ficção com livro sobre ditadura argentina

Ex-refém das Farcs, autora diz que usou a imaginação para ficar sã

Nahima Maciel
postado em 10/11/2015 07:30
;No cativeiro, eu vivi da fé em um futuro melhor. E era preciso imaginá-lo. Hoje, a imaginação continua a me ajudar a reconstruir minha vida: eu sonho para construir;
Ingrid Betancourt, ex- senadora colombiana e ex-refém das Farc

No livro, casal enfrenta perseguição e medo durante a ditaduraDurante os anos de cativeiro na selva colombiana, Ingrid Betancourt, 54 anos, se agarrou à ficção para dar conta da situação. Para ter fé em um futuro no qual estaria livre era preciso usar a imaginação. ;No cativeiro, eu vivi da fé em um futuro melhor. E era preciso imaginá-lo. Hoje, a imaginação continua a me ajudar a reconstruir minha vida: eu sonho para construir;, conta a ex-refém das Farc, em entrevista ao Diversão. Libertada há seis anos pelo exército colombiano ; coincidentemente a mesma quantidade de anos que passou em cativeiro ;, ela agora mergulha na ficção munida de toda a liberdade possível. Em A linha azul, a escritora franco-colombiana e ex-senadora da República da Colômbia foi buscar na Argentina o material para um romance que mistura realismo fantástico e perseguição política. A estreia na literatura de ficção de Ingrid Betancourt traz uma trama batida e vastamente explorada pelos escritores latino-americanos, mas é bem escrita e, eventualmente, intrigante.

A linha azul não embala o leitor desde o primeiro fôlego, como acontece com Não há silêncio que não termine, o relato de Ingrid sobre os anos de cativeiro, mas é um retrato romântico e místico de uma relação entre dois jovens durante os anos de chumbo na Argentina. Theo é um estudante de engenharia politicamente engajado e Julia, a namorada e futura esposa, herdou da avó o dom da vidência. A moça desmaia e tem visões pelos olhos de pessoas que não conhece. O destino do casal passa pela captura, pela tortura e pela desilusão amorosa. A história gira em torno do padre Carlos Mugica, um personagem que provocou em Ingrid a dose de misticismo impressa em Julia.

Durante as leituras sobre a Teologia da Libertação para um doutorado sobre teologia que prepara na Universidade de Oxford, na Inglaterra, a autora se deparou com a história de Carlos Mugica, filho de uma família argentina bem-sucedida cuja beleza era notável e que resolveu ser padre para ajudar os excluídos. Mugica morreu assassinado em maio de 1974, três semanas antes da morte de Juan Perón, em quem primeiro confiou e contra o qual acabou por lutar. Mas foi uma coincidência em uma praia da Austrália, onde encontrou uma desconhecida que conheceu Mugica, que levou Ingrid a escrever o romance tendo o padre como figura central. Em A linha azul, Mugica é uma espécie de referência para Julia e Theo, embora a habilidade sobrenatural da protagonista ocupe boa parte da curiosidade da narrativa. A liberdade e suas consequências e responsabilidades também são temas constantes nas discussões entre os personagens e, num paralelo inevitável, remetem às reflexões de Ingrid durante o período que passou sequestrada. ;Hoje ou amanhã;, diz a avó de Julia, ;as escolhas diante da morte são as mesmas para todos: desejá-la, enfrentá-la ou tentar fugir dela.;

Entrevista / Ingrid Betancourt


Por que escolher a Argentina e a ditadura, temas bastante batidos da literatura latino-americana, em vez da Colômbia, como tema de um romance?
Por que não? Nós somos cidadãos do mundo. O que acontece na Argentina, no Brasil, no Irã ou na Alemanha me interessa tanto quanto o que acontece na Colômbia ou na França. De fato, a realidade dos outros países, suas histórias, são espelhos nos quais podemos ver refletidos os nossos, para melhor compreendermos a nós mesmos e buscar uma sabedoria comum.

Assim como você, Julia e Theo vivem momentos traumáticos e há cenas pesadas de tortura no romance. Seriam eles dimensões, projeções de sua própria história?
Julia e Theo têm seus próprios destinos, eles vivem uma grande epopeia romântica em um contexto histórico dramático no qual a vida e a morte, o amor e o ódio, o passado e o presente, tudo entra em contradição para obrigá-los a fazer escolhas. Ora, como dizia Sartre, nós somos nossas escolhas. É no exercício dessa liberdade que eles vão definir quem são e, sobretudo, quem eles querem ser. O que é um herói e o que é um covarde? Como podemos nos reinventar, sair de um eu que não nos satisfaz? A linha azul é o horizonte dessa busca, que é a nossa busca. Então, claro, há muito de mim mesma em tudo isso, de minha reflexão sobre a força da liberdade e do medo; de minhas convicções sobre a vida, a morte; sobre meus dilemas, minhas assombrações e minhas certezas.

Por que o realismo fantástico, um gênero literário que faz parte do passado da história literária latino-americana?

O rótulo de realismo fantástico é um atalho. Na verdade, mais do que um estilo literário, se trata, para mim, de uma tática narrativa para me abrir para a totalidade do humano, uma totalidade sempre em equilíbrio entre o empírico e o transcendental, entre o mundo material e o divino que há em nós, ou, se preferirmos, entre a experiência do natural e a experiência que nós podemos ter do sobrenatural.

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