Foi a editora Anna Dantas quem levou Ernesto Neto pela primeira vez à região do rio Jordão, no Acre. Lá, o artista teve contato com os huni kuin, povo que tem o desenho como expressão essencial de uma cultura milenar. Um dos artistas plásticos mais importantes do país, Neto voltou do Jordão para o Rio de Janeiro transformado. Durante os três anos que sucederam a viagem, o artista passou a incorporar vários elementos indígenas à própria produção e se aproximou mais de outros povos e da cultura indígena.
Mas foi durante uma viagem de carro ao lado de Ailton Krenak pelas montanhas de Minas Gerais que nasceu a ideia de realizar um encontro de várias etnias no qual se discutisse e expusesse, principalmente, a produção cultural indígena. Krenak é escritor, ambientalista e líder respeitado dos krenak, habitantes do médio rio Doce, região devastada pelo desastre da barragem de Fundão. O Moitará, realizado entre outubro e dezembro no Memorial dos Povos Indígenas e Centro de Convenções, nasceu dessas conversas e traz o nome de um ritual dos índios do Xingu.
[SAIBAMAIS]
Na semana passada, o artista e o índio estiveram em Brasília para o encerramento do festival. Participaram de rituais no terreiro do Memorial e da festa que reuniu 28 etnias em eventos centrados, principalmente, na expressão cultural de cada uma. Krenak, Neto e Anna acreditam que a cultura é um espaço de diálogo que pode, para além do embate político, servir de porta para o conhecimento indígena. A programação foi montada com a ajuda de Álvaro Tukano, diretor do Memorial, e Neto teve a ideia de pintar as paredes externas do prédio com motivos xinguanos. O Moitará foi dividido em eixos que contemplaram a literatura, o cinema e o canto produzidos por povos de todo o Brasil. Para Krenak, organizar a programação equivaleu a ir além das celebrações pontuais que costumam acontecer pelo país. ;Essas celebrações não são expressas como um programa. São eventualmente celebradas, tem um evento, mas nunca um programa;, lamenta. A ideia é repetir o Moitará nos próximos anos como uma programação fixa. Krenak, Neto e Anna conversaram com o Diversão & Arte sobre o festival, mas também sobre a situação dos povos indígenas e a importância de divulgar o conhecimento cultivado há milênios por essa população.
A pintura
Ernesto Neto ; Essa pintura é muito importante nos povos indígenas e na humanidade e esse prédio, com esse corpo branco, ficava meio desnudo. Precisávamos dar uma vida a ele, então a gente teve essa ideia de pintar. Fizemos um pequeno ritual de encontro para abrir, respirar esse terreiro, e em mim veio forte essa ideia da pintura nesse entorno. Na Anna veio a ideia do fogo. E o Ailton já estava com uma ideia de que o povo indígena chegasse aqui com sua literatura, seu canto, sua dança, com essa vivência, essa coisa ativa. O que nos incomoda um pouco aqui no Memorial é a palavra memorial, que dá uma ideia de coisa morta, ainda mais do lado do Memorial JK.
Ailton Krenak - Fica uma ambiguidade terrível. É claro que incomoda, mas obriga também a pensar. A pintura acendeu o fogo dentro e fora também. Só esse assunto já dá a maior conversa.
Cop 21
Ernesto Neto ; A impressão que tive foi a de uma visão bem materialista da coisa. Tudo bem. Talvez, em vez de derrubarem a floresta para plantar soja e criar boi, vão tirar outros produtos da floresta. Parece melhor, mas não é uma visão de uma nova ordem de pensamento de espiritualidade e de relação com o planeta, com as pessoas, com o mundo em volta.
PEC 215
Ailton Krenak ; Foi a primeira vez que o ministro da justiça fez um pronunciamento enfático dizendo que a PEC 215 não vai ser aprovada porque não é um objetivo do governo. Eu guardei essa fala. Nós vamos acompanhar esse projeto para que seja abandonado como estratégia de acesso e ocupação dos territórios indígenas. Isso está repetindo aquele programa Calha Norte, do governo Sarney. Ele tinha a mesma intenção, que era de violar a integridade dos territórios indígenas. Mas houve um pequeno intercurso entre o que todo mundo não falava antes e o que o ministro da justiça e a presidente falaram agora.
Ernesto ; E esse desenvolvimento todo está levando a gente a algum lugar? Essa é a pergunta que está acontecendo, porque a gente está vendo o mundo numa situação bem difícil, querendo comer mais da terra, e a gente não vê vantagem significativa em relação à vida, ao cotidiano de todo mundo. Talvez pra quem está tirando da terra, esteja modificando a vida dele, mas será que ele, de fato, está mais tranquilo?
O consumo
Anna ; Se você entra numa mineradora e vê o que está sendo retirado da terra, tem que saber que isso está no liquidificador, no carro, no celular, no motor. Isso está sendo consumido por todo mundo e desejado por quem não está consumindo. É uma mudança de desejo, de valor, de sonho (que precisamos). Você começa a sonhar com outras coisas. E esse movimento, por menor que seja, é importante porque provoca as pessoas a pensarem, sonharem e desejarem outras coisas.
Ernesto ; O indígena pensa na cura e esse desenvolvimento todo trabalha com a cura também. Você começa a se sentir mal, aí você vai no shopping e compra uma blusa. Dois dias depois, está se sentindo triste novamente e compra outra blusa. Aí ganha dinheiro e compra um carro. Ganha mais dinheiro e compra dois carros, aí saí um carro novo você não aguenta e compra O que move as pessoas para isso? É um desejo, uma cura que a pessoa acha que está recebendo ali. Mas será que está curando de fato? Ou será que está jogando aquela pessoa mais dentro do buraco ainda, do sofrimento?
Ailton - tem um poema do Drummond que fala da viagem do homem à Lua. Há 40 anos, ele disse que o homem foi à Lua. Voltou. Não satisfeito, quis ir a Marte. Foi a Marte e continuou todas as viagens, mas a única que podia resolver mesmo o assunto dele era uma viagem para dentro de si. Ele ainda não conseguiu comprar uma passagem para lá.
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