O preconceito é latente e oprime. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo, segundo pesquisa da ONG europeia Transgender Europe (TGEU), divulgada no ano passado. O cenário é hostil, mas não desestimulou a formação da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, em 2008, nos corredores da Universidade de São Paulo. Além do som inquieto e multifacetado ; com influências que vão do tropicalismo de Gilberto Gil ao soul modernizado de Amy Winehouse, tudo muito bem consolidado ; o grupo chamou a atenção pela presença de duas vocalistas transgêneros.
As cantoras Assucena Assucena e Raquel Virgínia, em princípio, se uniram ao guitarrista Rafael Acerbi por inquietações de natureza artística. Naturalmente, a discussão política foi posta em cena. ;Isso se potencializa na medida em que na linha de frente da banda estão duas travestis, as quais cotidianamente são tratadas como uma anomalia social. Isso nos leva a pensar em resistência, representatividade e visibilidade. Mas, antes de tudo, somos artistas;, define Assucena Assucena. ;Nunca houve um movimento de decisão com relação a ser engajada ; quando se é travesti, certos posicionamentos são necessários por conta da grande exposição violenta que sofremos. Questão de sobrevivência;, complementa Raquel.
Nem sempre é fácil denunciar as mazelas do preconceito, do machismo e da transfobia. Quando e porquê decidiram se engajar, tanto com a criação da banda, quanto na esfera pessoal?
Assucena Assucena: Não foi um engajamento em si, a priori existiu inquietações de natureza artística. A discussão que se propõe política aparece em nós naturalmente. A ideia nunca foi lançar um disco político, mas uma obra artística. Entretanto o político inevitavelmente estava e está em nós, como ser social que somos. Isso se potencializa como discussão na medida em que na linha de frente da banda estão duas travestis, as quais cotidianamente são tratadas como uma anomia social. Isso nos leva a pensar em resistência, representatividade e visibilidade. Mas antes de tudo somos artistas. O germe da primeira composição do disco sai após um encontro entre eu, Raquel e o Rafa. Quando nós começamos a mergulhar intensamente na obra de Gal Costa em 2012, passamos a ouvir seus discos inteiros e entender signos e proposições artísticas a partir de fundamentos estéticos da música popular brasileira muito bem consolidados. Passamos a ouvir e entender um disco como uma obra, como uma totalidade. O disco Mulher nasce antes d;As Bahias e a Cozinha Mineira.
Raquel Virgínia: Nunca houve um movimento de decisão com relação a ser engajada ; quando se é travesti, certos posicionamentos são necessários por conta da grande exposição violenta que sofremos. Questão de sobrevivência. A banda surge principalmente com pretensões artísticas em meio a discussões sobre estética, e isso tem vários níveis de complexidade que podem ou não ter conexão direta com as denúncias das mazelas. Apostamos na nossa liberdade e isso em si já é muito engajado.
Mesmo na USP, onde vocês se conheceram (um ambiente acadêmico e de debate de ideias), há uma série de denúncias de discriminações contra gays, negros, mulheres, enfim, contra qualquer tipo de minoria. Por que a sociedade brasileira ainda sustenta esses vícios antigos, arcaicos?
Assucena: Não acho que são vícios, é mais complexo que isso, são movimentos estruturais de poder historicamente construídos, sob os quais a nossa sociedade infelizmente está assentada. Acima disso estão ideologias de cunho religioso, político e social, as quais são utilizadas para perpetuar o poder, principalmente, de uma pequena parcela da sociedade. O Brasil foi construído por uma história de violência desde o princípio, primeiro com indígenas, depois com sociedades africanas, nesse bojo o estupro já era uma prática milenar, ou seja, a chamada mestiçagem brasileira é fruto do estupro de mulheres indígenas e negras pelos homens brancos colonizadores. Mulheres, transexuais, negros sentem cotidianamente o peso histórico das práticas racistas e machistas, pessoas morreram e estão morrendo, por isso cotidianamente lutaremos contra isso.
Raquel: A USP é um dos espaços mais elitistas e preconceituosos com que eu tive que lidar na minha vida, para uma pessoa negra é muito cruel estar lá. É importante o empoderamento daquela estrutura e a transformação daquele espaço viciado, assim como outros de espaços de poder. São os lugares de decisão e por onde circula a difusão de comportamentos que devemos disputar, assim, acredito e tenho esperança que as bases que sustentam esses vícios vão sendo derrubadas.
O que falta para, no Brasil, termos uma legislação parecida a da Argentina, que em 2012 promulgou a Lei de identidade de gênero, em que as pessoas podem ser reconhecidas de acordo com a percepção que têm de si mesmas?
Assucena: É preciso de uma política educacional sobre gênero e sexualidade mais efetiva, que envolva arte, história e filosofia, para não eleger mais um Congresso Nacional tão conservador como esse que não pensa honestamente essas questões. O projeto de Lei 5069 é um ataque à liberdade da mulher e se coaduna diretamente com a violência, uma vez que dificulta legalmente o aborto por vítimas de estupro. Como promulgar uma Lei de identidade de gênero hoje quando a religião tem sido usada como argumento para deslegitimar os direitos e a luta da população LGBT dentro de um estado laico?
Raquel: Falta estarmos nos lugares de decisão. Não serão os legisladores homens brancos da elite absolutamente retrógrada do Brasil que vão realizar nossas demandas.
Mulher é um disco, mas também um manifesto. Acreditam que falta, no mercado fonográfico brasileiro, uma maior quantidade de artistas com discos de propostas semelhantes, com teor político?
Assucena: Não. O artista não tem uma obrigação com o fazer de uma arte política, a não ser que sinta, queira e seja verdadeiro para sua obra. Se bem que o ser humano é um animal político até quando não o quer, né? Pois bem, qualquer arte tem que vir de dentro, isso não é um clichê, é uma verdade. Se há conclusões políticas ali, é que ela foi apreendida, afinal somos catalisadores do universo de sentimento de nosso tempo e espaço, e até o político aí virá sentimento.
Raquel: Acho que falta no mercado fonográfico diversidade. Espaço para que apareça o que já existe ; o Brasil é muito rico em propostas artísticas, o que precisa é aparecer. Não dá pra 90% das canções executadas no país ser sertanejo universitário e decididas pela Rede Globo.
O ano de 2015, certamente, ficou marcado pela tomada de consciência do poder feminino. Essa onda de empoderamento deve continuar em 2016?
Assucena: Essa onda de empoderamento sempre existiu, a tomada de consciência foi se manifestando diacronicamente com o enfraquecimento das ideologias patriarcais. Penso que ela está ganhando mais força, adesão e articulação social. Ninguém deu direito às mulheres, nós os conquistamos, com muita luta. Por isso a equidade de gênero virá, cedo ou tarde. Estamos desnaturalizando estruturas e ideologias que afirmavam que a mulher era naturalmente submissa e biologicamente mulher.
Raquel: Espero que continuemos! Eu percebo uma conjuntura em que os avanços são nesse sentido.
Quais os conceitos por trás da capa do álbum?
Assucena: Há história; resistência; denúncia. Há o sangue, o vermelho do batom, do vestido, da menstruação; isto é, a dimensão humana na arte abstrata se apresenta. Há a origem do mundo.
Raquel: Essa capa feita pelo nosso amigo Will Cega, artista plástico, tem como fundamento o vermelho em tom flamejante pra indicar nossa pretensão de trazer em mulher a força, a luta, vitalidade. O triângulo preto no meio traça de forma sofisticada o corpo da mulher ; As discussões foram muitas em torno dessa arte. Um detalhe é que foi a capa uma das primeiras conclusões que tivemos do disco e uma das poucas que não sofreu alteração.
Podem falar mais sobre as inspirações sonoras da banda? Parecem-me muito diversas, isso deriva do fato de serem sete integrantes, cada um com suas referências e subjetividades?
Assucena: A coesão musical da banda se fez principalmente por dois grandes movimentos da MPB da década de 70, o Tropicalismo e o Clube da Esquina, esses dois movimentos até adensam o conceito do nome de nosso grupo. Gal Costa é a figura maior que vem do tropicalismo pra nós e a partir dela passamos a ouvir as obras de Maria Bethânia, Elza Soares, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Clementina de Jesus, Dorival Caymmi, Milton Nascimento, Cartola, Amy Winehouse, Ney Matogrossso.
Rafael Acerbi: No processo de composição do disco tivemos uma experiência de imersão na Música Popular Brasileira. Comprávamos discos e fazíamos audições buscando compreender as minúcias de cada artista, a narrativa, o arranjo, os timbres... Tudo isso confluiu para o nascimento do disco Mulher. Nosso álbum tem uma sonoridade bastante plural e provocativa. Trouxemos referencias ao baião, a bossa-nova, ao axé e muitos outras vertentes da MPB, mas sempre em diálogo com a modernidade tendo a referencia de álbuns como Recanto, de Gal Costa.
Nos concentramos ao longo de cerca de oito meses na produção do álbum Mulher. Cada músico trouxe consigo influências diversas que somaram na construção da obra (música erudita contemporânea, jazz, eletroacústica). A produção musical ficou ao cargo de Deivid Santos.
Raquel: O disco tem diretriz em termos de referencia: Gal Costa e Clube da Esquina. Temos muitas inspirações para além disso, obviamente, mas as principais são essas. Nossa coesão surgiu a partir dos ensaios que duraram cerca de seis meses e também das interferências do Deivid Santos, nosso produtor musical, que ajudou a modelar nossa proposta.
A banda foi formada em 2013, ano em que eclodiram as manifestações populares no país. Há alguma ligação entre os protestos populares e a decisão de montarem o grupo?
Assucena: Apesar de termos participado ativamente desses protestos, não há relação, porque o disco começa a ser pensado no meio de 2012 e como disse, o disco nasce antes do grupo.
Raquel: Diretamente não existe essa ligação.
2016 está no começo, mas já é possível falar de planos para o ano? Novo disco ou projetos devem nascer?
Assucena: 2016 é o ano que trabalharemos o disco e o show oficial de Mulher. Essa obra é a nossa estreia, por isso há muito o que fazer. Há um clipe sendo pensado, há parcerias sendo articuladas em torno do nosso primeiro disco. A ideia é focar no álbum Mulher.
Raquel: O disco Mulher acabou de ser lançado, isso foi em novembro. Faremos a turnê e esperamos circular por muitos palcos por todo o país, por enquanto esses são os planos. No final do ano vamos entrar em estúdio para o prepararmos o próximo que já está sendo de alguma forma elaborado,e vai se chamar Bicha.
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