Diversão e Arte

Exposição inédita lembra os 500 anos da morte do pintor Hieronimus Bosch

Cidade de Hertogenbosch, na Holanda, onde o artista passou toda a vida, será palco da maior mostra já feita sobre o seu legado

Nahima Maciel
postado em 10/01/2016 07:32


Cidade de Hertogenbosch, na Holanda, onde o artista passou toda a vida, será palco da maior mostra já feita sobre o seu legado


Hieronimus Bosch produziu pouco, mas foi o suficiente para elevá-lo a um patamar capaz de despertar admiração e curiosidade ao longo de mais de cinco séculos. O pintor morto há 500 anos na cidade holandesa de Hertogenbosch deixou impresso em desenhos e pinturas um universo alucinante de seres perversos e divinos, responsáveis por arregalar os olhos de meio mundo.

Bosch passou a vida toda nessa pequena cidade no sul da Holanda, um município que conta hoje com pouco mais de 140 mil habitantes e que agora se prepara para uma maratona de celebrações em homenagem ao pintor. Hertogenbosch viverá em função da obra de seu filho mais ilustre até o início de 2016. Haverá desde projeções em 3D das pinturas em praças, fachadas e pontes até espetáculos de música e teatro inspirados nas pinturas (aliás, bastante ricas para interpretações dramáticas). Até o cineasta Peter Greenaway foi convidado a produzir uma performance para o evento. No site www.bosch500.nl/en, o público pode, inclusive, fazer um tour virtual pela cidade. Mas o trunfo do projeto Bosch 500, como foi batizada a maratona de festividades, nasceu da obsessão de Charles de Mooij, diretor e curador do pequeno Noordbrabants Museum.

A instituição não possui trabalhos de Bosch, mas De Mooij conseguiu convencer museus por todo o mundo ; incluindo Louvre, Prado, Accademia, de Veneza, Metropolitan, de Nova York, e National Gallery of Art, de Wahsington ; a emprestarem um conjunto de 49 obras para Hieronimus Bosch - Visões de um gênio, exposição que terá início em 13 de fevereiro. Será a maior reunião de trabalhos do pintor já realizada. Bosch não era um artista prolífico e pintou cerca de 45 obras, hoje espalhadas por 10 países.


Informações
Em troca do empréstimo, para convencer os museus e ter algo a oferecer, os idealizadores do Bosch 500 criaram, em 2007, o Projeto de Pesquisa e Conservação Bosch, uma equipe de especialistas dedicados a estudar aspectos obscuros até hoje não esclarecidos da obra do pintor. Entre os feitos do time está o reconhecimento da autenticidade do desenho Paisagem infernal, cuja autoria até hoje era considerada anônima.

Munidos de equipamentos de última geração de fotografia infravermelha, os pesquisadores visitaram museus na Europa e nos Estados Unidos para estudar as obras de Bosch contidas nas coleções. Com a pesquisa, eles puderam chegar às primeiras camadas das pinturas e traçar os passos do pincel do pintor até a camada superficial, a única à qual o público tem acesso. Um banco de dados valioso e detalhado foi oferecido aos museus em troca dos empréstimos e uma amostra do trabalho pode ser verificada on-line, no site do projeto.

A municipalidade de Hertogenbosch também se comprometeu a pagar pelo restauro de obras deterioradas, o que ajudou De Mooij a reunir quase todas as pinturas do artista. ;O maior desafio foi o fato de que não tínhamos nada para emprestar, mas inventamos esse projeto de pesquisa como espécie de contrapartida para que nossos colegas na Europa e nos Estados Unidos nos emprestassem os trabalhos. E funcionou;, conta o curador.

Arte e Igreja
A obra de Bosch é uma das mais intrigantes da pintura do século 15, um período em que críticas à Igreja não eram bem-vindas e dissidentes costumavam ser queimados como hereges. Hoje, a pintura povoada por sereias lascivas, peixes voadores, porcos com cara de frades, homens com pés de galinha e outros monstros pode parecer uma crítica contundente à simbologia católica, mas é preciso lembrar o contexto no qual o pintor viveu.

Bosch era, na verdade, muito ligado à Igreja e sua pintura era adorada por papas, padres, frades e abades. ;Algumas foram de posse de Felipe II, da Espanha, uma Corte muito atenta para o aspecto herético;, conta Sérgio Rizo, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília (FAU/UnB). ;As pinturas dele atendiam aos preceitos da Igreja, essa questão da heresia é uma visão moderna que temos.;

Nascido em família de artesãos simples, ele sempre morou na mesma casa, na praça do mercado de Hertogenbosch. Aprendeu pintura com o pai e o avô, e casou-se com uma herdeira de um comerciante rico. Reverenciado em vida como um grande pintor ; tinha clientes que incluíam reis, a Igreja e a nobreza ;, ganhou dinheiro, mas nunca ficou rico nem deixou Hertogenbosch, da qual tirou, inclusive, o próprio nome. Apenas atravessou uma rua e foi morar com a esposa do outro lado da praça.

Discrição
Ao contrário de Michelangelo, que escreveu diários e teve a própria história registrada por biógrafos ainda em vida, Bosch permaneceu um mistério e até as datações das obras são incertas. ;Na época, as pessoas não escreviam sobre suas próprias coisas. O que era importante era a contabilidade, o dinheiro. Você encontra, nos arquivos, todo tipo de informações sobre as encomendas, mas são sempre coisas que têm a ver com dinheiro;, explica De Mooij.

O jardim das delícias, o tríptico mais conhecido do pintor, teria sido encomendado pela família de Nassau, que mantinha a obra no palácio, em Bruxelas. Mais tarde, o quadro passou para Felipe II, rei da Espanha, que o pendurou em seu próprio quarto. Na pintura, Bosch retratou a vida no paraíso e no inferno, com ênfase nos pecados, representados na parte central do painel. O bem e o mal parecem fazer parte de um mesmo plano em cenário de cópulas e perversões praticadas por seres de todas as esferas: bichos, homens, santos e demônios. Para o duque de Burungdy e Brabant, ele teria feito O juízo final, outro tríptico no qual criação, paraíso e inferno aparecem como tema. De Mooij sabia que não conseguiria o empréstimo de O jardim das delícias, que pertence ao Museu do Prado (Madri), mas conseguiu que a instituição enviasse o tríptico Haywain, tão rico em detalhes quanto seu irmão famoso.

As obras de Bosch influenciaram toda a história da pintura. Vários períodos e movimentos beberam na fonte do pintor. Diz-se que Salvador Dalí ficava horas em frente ao Jardim das delícias, de onde teria tirado um punhado de conceitos para o surrealismo. ;Era um desenhista excepcional, um verdadeiro quadrinista primitivo, capaz de colocar inúmeras cenas em um mesmo plano, coisa muito difícil de fazer, mantendo tudo harmonizado;, repara o pintor Taigo Meireles, que teve contato com a obra de Bosch pela primeira vez ainda na infância. Para o também pintor Eduardo Belga, o lado grotesco da produção do holandês é o aspecto mais interessante da obra. ;Ele pintava primeiro em cinza e preto e branco, depois fazia a velatura. É uma construção que dá mais espaço à imaginação;, acredita.



No Brasil
A equipe do Projeto de Pesquisa e Conservação Bosch não cogitou pedir emprestada a pintura As tentações de Santo Antão, pertencente à coleção do Museu de Arte de São Paulo (Masp), porque não a considera um trabalho de Hieronimus Bosch. Apesar de figurar na coleção do museu como uma obra do artista holandês, a autenticidade, segundo Charles de Mooij, não pôde ser comprovada. ;Nossos pesquisadores viram o trabalho no Brasil, e ele é muito interessante, mas não é considerado um Bosch verdadeiro, por isso eles não aprofundaram as pesquisas. Tínhamos que focar nos trabalhos que realmente eram de Bosch, então o trabalho em SP não foi levado em consideração;, explica curador do Noordbrabants Museum .



Bosch tem cerca de 45 pinturas e desenhos

espalhados por 2 continentes,

10 países,

18 cidades e

20 coleções



Entrevista com Charles Mooij

Charles de Mooij, curador e diretor do Museu Noordbrabant

Qual foi o maior desafio em produzir essa exposição?

O mais difícil foi conseguir as pinturas porque não temos sequer uma pintura ou desenho de Hieronimus Bosch. E fazer uma exposição com obras emprestadas é difícil se você não tiver algo para emprestar em troca aos outros museus. Isso foi o mais difícil. Achamos então que seria uma boa ideia dar algo em troca e como temos uma grande experiência em pesquisa, começamos o Porjeto de Pesquisa e Conservação Bosch. É um projeto internacional de larga escala sobre o trabalho do Bosch e oferecemos investigar todos os trabalhos dele com técnicas muito modernas. Os trabalhos de Bosch não são tantos assim, então seria possível investigar todos, em alguns anos. E encontramos na municipalidade a vontade de dar financiamento a essa pesquisa. Começamos em 2007 e em 2010 demos início à pesquisa. O time de pesquisa foi a todos os museus na Europa e nos Estados Unidos onde há pinturas de Bosch e fez pesquisas com técnicas modernas, especialmente com um scaner com luzes e lentes que fazem fotos em macro, fotografia infravermelha. A equipe combinou todas essas informações em uma ampla base de dados, então foi possível fazer um arquivo de todas as informações. E uma vez que isso foi feito, foi possível combinar e comparar as informações com as pinturas e desenhos. Quando você vê muitos trabalhos em detalhe, é possível dizer se é um trabalho dele mesmo ou se é feito por outra mão. E você também consegue mais informações sobre o processo criativo do pintor. Isso foi especialmente interessante, porque com técnicas fotográficas especiais você pode investigar camada por camada de uma pintura. Claro, a pintura começa com um painel e há camadas inferiores preenchidas com tinta, mas você pode ver os exercícios, se começou com um desenho e como foi mudando.

E o que esses resultados permitiram?


Com esses resultados, demos de volta aos museus e isso foi muito interessante para eles, foi a razão pela qual foram prestativos em emprestar os trabalhos para nossa exposição. Quando começamos a pesquisa, sabíamos que haveria alguns trabalhos de Bosch que não estariam em boas condições de viagem e que talvez a cidade de Hertogenbosch poderia ajudar com fundos para restaurar essas obras. E quando a cidade disse que podia pagar por esses restauros, alguns museus acharam isso tão bom que decidiram emprestar as pinturas para a exposição em 2016.


Que elementos o senhor considera mais importantes no trabalho de Bosch?

Bosch é um artista tremendamente criativo. A linguagem que usa é tão extraordinária que, cada vez que você olha para os trabalhos, encontra novos detalhes, novos enigmas. O que é muito interessante é que ele tem sua própria linguagem e tem uma mensagem muito forte. Vivendo no final do século 15, início da Renascença, ele queria passar uma mensagem nas suas pinturas de que o homem passa pela vida e, nessa viagem da vida, encontra toda sorte de tentações e de demônios, e que o único modo de ficar no caminho certo é seguir o exemplo do Cristo. E quando você faz isso, no fim, você será julgado, mas irá para o céu. Se ceder às tentações, vai para o inferno. Mas não quer dizer apenas que você vai para o inferno, porque o homem é responsável pelos seus atos e, nesse sentido, Bosch é não só um cristão, mas um humanista também. O homem é responsável pela maneira como vive e nas pinturas, Bosch mostra às pessoas que elas vão para o céu se seguirem o exemplo de Deus. A responsabilidade repousa no próprio homem. Isso é muito importante na mensagem dele. É uma abordagem humanística.


Ele era um artista conhecido, recebia encomendas da elite. Por que não se sabe muito sobre ele hoje?

Não se esqueça que ele viveu há 500 anos, em uma cidade que não tinha tantas fontes de conhecimento. Sabemos muito sobre os pintores do século 17, a escola holandesa, do século 18, e há muitos escritos nos arquivos. Mas na época de Bosch, no século 15, as pessoas não escreviam sobre suas próprias coisas. O que era importante, na época, era tudo que era relacionado à contabilidade, a dinheiro. Encontramos nos arquivos todo tipo de informações sobre as encomendas para a irmandade ou para outras pessoas, mas são sempre coisas que têm a ver com dinheiro. Por que ele pintou o que pintou? O que pensava? Esse material, nós não temos. Temos muita informação nos próprios trabalhos de Bosch..


Como foi possível que um homem como ele, vivendo em uma pequena cidade, membro de uma comunidade religiosa, num tempo em que bruxas eram queimadas em fogueiras, pudesse pintar essas criaturas estranhas?

Hertogenbosch não era tão pequena. Era a secunda cidade do norte da Holanda. Era no nível de Bruges, por exemplo. Mas realmente, não era uma cidade como Paris ou Roma. Não havia muitos pintores na região. Havia muitas fundações religiosas, com monastérios, igrejas, então havia manuscritos que ele podia ler e havia uma fonte de inspiração. Mas dado o fato de que Bosch trabalhou apenas com a própria família, ele podia criar seu próprio imaginário. Se tivesse vivido em Antuérpia, Bruges ou Paris, onde havia comunidades de artistas, ele poderia ter sido influenciado por outros artistas e, talvez, não tivesse pintado da maneira como pintou. Mas ele estava baseado em Hertogenbosch, em seu próprio contexto cultural, e deve ter sido uma pessoa extremamente criativa para usar essas coisas que ele via nas igrejas - há catedrais que foram construídas nessa época -, todos esses elementos góticos, os manuscritos que lia nos monastérios. Havia muitas casas de impressão em Hertogenbosch na época, então ele podia ler os livros impressos na época. Ele teve uma educação muito boa, talvez não fosse um intelectual, mas era bem educado e estava familiarizado com a mitologia. Ele deve ter sido uma espécie de gênio na época.

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