Diversão e Arte

Livro reúne poesias, letras e prosa inédita do de Jorge Mautner

Em 'Kaos total', Mautner destila sua pena em temas como política e a situação do Brasil

Nahima Maciel
postado em 19/01/2016 07:30

Jorge Mautner: toneladas de escritos e fé no amálgama do Brasil, apesar de todas as crises

Jorge Mautner ficou surpreso quando João Paulo Reys e Maria Borba descobriram escritos inéditos dos anos 1960 em um baú de guardados. A dupla de pesquisadores e responsáveis pelo site do compositor foi responsável por cavucar os arquivos de Mautner e trazer de lá o conjunto de letras, poemas, prosa poética e fragmentos que integram Kaos total. Editado pela Companhia das Letras, o livro faz um mergulho na produção poética de Mautner.

Além de versos conhecidos, musicados e gravados, a compilação traz escritos inéditos de várias épocas, incluindo a década de 1950 e anos mais recentes. "Tenho toneladas de coisas escritas e eles (João Paulo Reys e Maria Borba) fizeram uma coisa incrível, descobriram até textos da década de 1960. E, no final do livro, tem letras e poesias novas", avisa Mautner. Enquanto preparavam o o acervo destinado ao site Panfletos da Nova Era, que reúne vídeos, imagens e entrevistas do compositor, os pesquisadores se depararam com um material que poderia render livro.

Kaos total retoma o nome do manifesto e do partido criado pelo artista no fim dos anos 1950. Mautner sempre se proclamou o "poeta do Kaos com K". Quando fez o manifesto e se filiou ao Partido Comunista, queria ir além da música. Criou uma ideologia a partir da mistura da cultura brasileira e de suas raízes africanas com as próprias referências europeias. Mautner é filho de sobreviventes do Holocausto que fugiram da Alemanha em busca de paz. Nasceu no Brasil, tem origem judaica, mas foi criado por uma babá ialorixá. Até os 7 anos, frequentou os terreiros de candomblé e, durante toda a vida, conviveu em casa com a língua alemã falada pelos pais (e pelo padastro) e a literatura europeia.

[SAIBAMAIS]Mautner se tornou um entusiasta do Brasil. É otimista, não acredita que a intolerância veio para ficar e ainda aposta na democracia e na política. O Brasil, ele acredita, é resultado de um amálgama inédito na história da humanidade. Em um dos versos de Kaos total, ele cita José Bonifácio. "Ele disse que diferente` dos outros povos e culturas, nós somos amálgama, este amálgama tão difícil de ser feito;".

ENTREVISTA

Você vê muita diferença entre as coisas mais recentemente, inéditas, e as feitas nos anos 1950?
Sempre é diferente, mas sempre são temas recorrentes, temas vastos. Sempre tem o lado da novidade do Brasil, que é o Kaos. Em 1960, comecei a escrever O deus da chuva e da morte. Depois, fiz o Partido do Kaos com K. Não bastava escrever, tinha que irradiar por música. Esse kaos seria a ideologia do Partido Comunista. O novo ser humano tinha que ser descrito em uma mitologia. Quando fiz o Partido do Kaos, em 1956, não bastava escrever, contar tudo em literatura, expressar por música, que tem maior abrangência. Eu precisava irradiar como um partido, um grupo.

No livro, quanto disso está presente?

Está presente o tempo todo. Se você notar escritos de várias épocas, está lá o tempo todo. Lá tem uma letra ou poesia recente sobre José Bonifácio, que fala da amálgama. Ninguém tem essa amálgama. Tem multiculturalismo, diversidade, mas são muito inferiores a amálgama. Essa, só nós temos. Sempre cito que em São Paulo, na década de 1960 chegaram os japoneses e imediatamente a umbanda criou um orixá samurai. É uma receptividade total, toda nossa história, o tempo todo é isso.

É possível explicar o Brasil pela literatura?
Sim, com Padre Antônio Vieira, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. E música faz parte. O povo brasileiro é fruto de culturas que se assimilaram, tem Jurema, tem o candomblé, rituais indígenas e tem quatro séculos de escravidão em que metade dos dias eram feriado para a senzala poder explicar tudo para a Casa Grande, inclusive como governar. Todos os nossos escritores são influenciados por essa visão, que já é do século 21. Só agora, com internet e celular, o que demorava 10 anos leva 10 segundos. Mas é bom lembrar que internet, celular, satélite e foguete, para funcionar, têm que ter um minério chamado nióbio. E nós temos 95% do nióbio do planeta. Em qualquer cultura do planeta, o desconhecido, o estrangeiro, é para ser estraçalhado. Ou isolado das mãos bondosas das culturas. Aqui, por uma loucura da história e desse mistério da vida, os índios tupis-guaranis tinham o contrário como religião: a religião era um mistério e o mistério os incumbiu a desvendarem o mistério. Então, para os tupis-guaranis, tudo que é estrangeiro, desconhecido, forasteiro, em vez de ser isolado, devia ser desvendado. Isso através do amor. Em três segundos de histórias, os tupis-guaranis conquistaram todo o nosso imenso litoral e, em vez de travarem combate com as tribos ali localizadas, iam transando. É uma disposição inédita em toda a história. São as condições mais inéditas da história do planeta.

E o Brasil hoje?
Hoje, ele é mais do que nunca isso. A humanidade acaba se nosso nióbio acabar. O mundo não respira nem bebe água sem o Brasil, e também não come. E mais ainda: chegou a hora da descoberta.

Mesmo com as crises, os escândalos de corrupção, a intolerância, você tem fé no Brasil?

Continuo cada vez mais com mais fé. O mundo, tem 7,5 bilhões de pessoas. Os que fazem terrorismo e intolerância são uma parcela pequena. Claro que tem poder por causa da irradiação. No Brasil, você tem a democracia total. Essa intolerâncias existem e elas precisam ser combatidas, não podemos subestimar isso, mas a meu ver, elas não estão com visões de vitória. Tivemos eleições com quatro candidatos: três mulheres -- Dilma guerrilheira da democracia, Marina, Jesus de Nazaré e Amazônia, Luciana Genro, com grande votação apesar do partido pequeno -- e Aécio Neves, idealista, patriota. Se não tivesse sempre esse perigo da intolerância, não teria graça. Tem um poema no livro em que falo ;cada dia sua agonia, cada dia sua aflição, a democracia se constrói noite e dia e não apenas no dia da eleição;.

Você ainda acredita na política? O que é a política para você?
Acredito na democracia, ela é uma política de liberdade. Acredito nesse sentido. Brecht dizia que o problema das pessoas que não querem saber de política é que eles acabam sendo vítimas daqueles que só pensam nisso. O que eu acho é que tem que ter 20% do bruto pra cultura e pra educação.

Qual o nosso problema com a educação, por que temos tanta dificuldade em melhorar os números e a qualidade?
É uma chave antiga de domínio: se impedia as pessoas de ler e escrever por vários motivos. Agora não dá mais, são 10 anos em 10 segundo pela internet, a informação está aí. Converso com pessoas do povo e eles sabem muito mais que meus colegas intelectuais. Porque estão informadíssimos. Eles absorveram Marcuse e tudo. Hoje, tudo é comunicação. Hoje, tem uma irradiação. Sou um otimista total. O que tem de terrorismo no mundo é mínimo. Tem grande efeito por causa da tecnologia, mas 98% do mundo é direitos humanos.

Como é sua relação com a ficção?

Quase não tem diferença, porque quase tudo é ficção. Nós estamos falando e isso também é ficção. É realidade e é sempre imaginação. Temos a imaginação que nasce do mistério de enfrentar a vida, do ato de adaptação ou agressão. O que é elaborado na velocidade da luz, depois vira palavra, e dentre as palavras, a poesia é a que mais se aproxima da música. Mas a música está acima, porque ela não tem explicação e fabrica o átomo do otimismo. Basta as pessoas chegarem e cantarem e uma coisa estranha acontece. A música é a base das religiões, acompanha o ser humano da morte ao nascimento e o próprio falar é música. Parece que o universo também é música desde o Big Bang.

Kaos total
De Jorge Mautner. Companhia das Letras, 414 páginas. R$ 54,90.

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