Diversão e Arte

Raquel Scotti encontra Alphonsus de Guimaraens em monólogo

A atriz traz a Brasília monólogo em que resgata as memórias do bisavô, o poeta Alphonsus de Guimaraens, por meio de fotos e escritos

postado em 23/01/2016 07:30
Raquel Scotti em Alphonsus A atriz brasiliense Raquel Scotti Hirson foi além dos versos do bisavô, o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, para se encontrar com ele. Fotografias e cartas trouxeram para ela o homem além do poeta, no espetáculo Alphonsus. Ela mergulhou em uma busca incansável por pistas que lhe trouxessem a voz, os gestos e as expressões do bisavô, morto 50 anos antes de ela nascer. Ao Diversão & Arte, Raquel falou sobre a infância na Brasília dos anos 1970, onde brincava no barro vermelho e subia nas árvores tortas do Cerrado. Falou também sobre o processo de criação do espetáculo e da descoberta da palavra como elemento do corpo.

>> Entrevista// Raquel Scotti Hirson

Como foi a sua infância em Brasília?
Acho que as melhores memórias que eu tenho são da infância. Eu tive uma infância muito boa em Brasília, nasci em 1971, em um momento em que a cidade estava começando a se formar. Eu morava na Asa Norte e, naquele tempo, a Asa Sul era um pouco mais povoada e a Asa Norte tinha muita terra, muito cerrado. Então, eu senti essa infância mesmo de pés no chão, de subir em árvore. Eu morava na 107 Norte, e era uma quadra da UnB na época, meu pai era professor da UnB. Até hoje é uma quadra um pouco diferente e naquela época só havia quatro prédios. Era uma quadra muito vazia e a gente se enfiava mesmo naquela terra vermelha. Então, tenho uma memória muito boa de estudar na Escola Classe, Escola Parque, viver muito a cidade de Brasília.

Foi uma fase ótima, infância e adolescência, porque quando eu saí de Brasília já tinha 18 anos. Foi aqui que decidi fazer teatro, embora eu não tenha feito mesmo teatro em Brasília, só comecei, mas é onde eu tive certeza de que eu queria fazer isso. Entrei na primeira turma de bacharelado de artes cênicas da UnB, que foi a turma de 1989, até então, só tinha licenciatura. Mas fiquei pouco tempo, foi o ano de uma greve muito grande na UnB e a UniCamp tinha trazido o vestibular nacional e fiz a prova aqui mesmo em Brasília. Fui para lá e achei meus pares, trabalho, pessoas com quem eu trabalho hoje que trabalho desde 1990, desde quando eu fui para lá, até antes de eu estar no Lume, a partir de 1993, já na finalização do curso. Meus colegas de início de curso são até hoje meus parceiros e colegas de trabalho, com quem aprendo, troco e crio.

O que te despertou para o teatro?

Não tem uma explicação, é um negócio meu. Eu tinha isso muito claro, desde criança. Desde os 11 anos eu gostei de brincar e ser outra pessoa. Nas minhas brincadeiras, sempre gostei de fazer personagens, fosse em uma festa ou evento da igreja, eu sempre estava inventando alguma coisa. No momento de fazer a escolha profissional não tinha outra coisa para escolher. Fui muito apoiada pela minha família e isso foi muito bom e muito importante porque precisei que eles me ajudassem quando fui morar fora e sempre apostaram nisso. Mas não há uma explicação lógica, isso sempre foi meu.

Na sua família tem alguém com ligação com o teatro?

Não tem. Tem muita gente ligada a poesia, filhos e netos o Alphonsus de Guimaraens, meu bisavô. Aqui em Brasília tenho uma irmã que é artista, designer de jóias, minha mãe pinta; Então, veia artística tem bastante na família, mas mais próximo de mim, do teatro, não. Tenho alguns primos no Rio de Janeiro que são poetas e que, de alguma maneira, fazem alguma coisa no teatro. Mas de seguir mesmo a carreira profissional, acho que não tem alguém muito próximo.

Saber-se bisneta do Alphonsus te despertou de alguma forma para a arte?

Acho que no início, como opção pela arte, não, embora isso sempre estivesse no meu imaginário. E eu sempre ouvia desde criança que eu era bisneta dela. Mas depois de um tempo, sim. Lá para o final da década de 1990 é que comecei a voltar meu olhar para ele para a poesia dele, mas isso já foi bem depois, que eu o encontrei na minha arte com esse bisavô artista também.

Como é o seu contato com a poesia?

Eu não sou uma pessoa de muita poesia, não. Não é exatamente o meu lugar, tanto de leitura quanto de escrita, porque eu gosto muito de escrever, mas não me arrisco a escrever poesia. Acho que foi mais o espaço da memória que me fez chegar ao poeta Alphonsus e menos um hábito de leitora de poesia. Até por ser bisneta dele, a poesia dele talvez seja a que eu mais tenha lido. Quando criança eu tentava ler um pouco e não entendia nada, era difícil para mim e acho que isso me afastava um pouco dele. Achava complexo e até hoje é, tem coisas com as quais não me identifico, mas hoje em dia há outra maneira de ler e compreender a poesia dele.

Sobre o que você escreve?
Escrevo sobre a arte de ator, sobre maneiras de se trabalhar o corpo do ator, maneiras de se criar a partir de metodologias, a partir do corpo, de observação e como isso funciona dentro do trabalho do ator. Então, gosto de escrever sobre isso. E escrevo sempre de uma maneira muito pessoal, muito narrativa, tento fugir do técnico. A narrativa é o lugar onde me encontro. Gosto muito dos relatos e ali coloco um pouco da minha poesia, do jeito que eu consigo.

Esse resgate da memória que te aproximou do Alphonsus também foi importante na criação do espetáculo? Como se deu o processo?
Eu precisava trabalhar com aquilo que eu tinha na mão e eu tinha poesias e de algumas crônicas que ele escreveu, mas eu queria descobrir o homem e fui buscando as pistas que eu poderia ter para chegar nele. Descobri que em termos de fotografia eu tinha apenas 15, que são todas as que existem dele. Com as fotografias, trabalhei a partir da mímesis corpórea, por meio da observação e de que maneira trago isso para meu corpo. No caso da fotografia, posso trabalhar isso de diversas formas, mas tem um primeiro olhar que é estático quase uma pose e que a gente tenta encontrar de que maneira preenche esse estático. Eu só posso preencher esse estático com a minha vida, com a minha história, jamais com a história do outro porque pertence ao outro. Vou encontrar em mim as frequências e o que ressoa e o que, de certa maneira, encontra com o outro. Mas parte sempre da gente. No caso dele, como as fotografias eram muito posadas, eu fui muito pelo olhar e comecei a jogar com o olhar, que sutileza que existe em cada olhar na fotografia. E fui criando um repertório corporal a partir disso.

O que mais lhe chamou a atenção nessa busca?

Depois, outra coisa que me chamou muito a atenção, foram as cartas que ele escreveu e recebeu. Porque ali eram lugares que revelavam um pouco mais de quem era esse Alphonsus, quem era essa pessoa. Fui criando transições entre uma fotografia e outra, recheando com o que me trazia essas cartas, que tipo de ações, que tipo de caminhadas, que tipo de olhares, que tipo de sorrisos, que tipo de respiração. Então, a partir desse encontro com a palavra fui preenchendo as fotografias e entremeando as imagens. Criei sequências de ações aonde eu tinha esses elementos. Fora isso, a experiência mais viva eram os contatos com os filhos dele, principalmente minha avó que viveu na minha casa durante muitos anos, então foi a pessoa com quem eu tive mais contato. Tinha muitas memórias da minha avó. Eu queria achar a voz do Alphonsus, mas eu não tinha a voz dele, então busquei na voz dos filhos dele. E na família, os Guimaraens têm uma maneira muito empolada de declamar poesia, um jeito mineiro e fui buscar nos filhos do Alphonsus, na minha memória ou de alguns que eu ainda consegui fazer gravações quando estava bem idosos, antes de eu começar minha pesquisa de doutorado.

Atriz encontra no palco o bisavô poeta E isso tudo a partir do seu interesse pela memória?

Pois é... Antes disso, só pelo interesse na memória eu também queria conhecer um pouco mais sobre meu bisavô. Peguei um pouco desse ritmo vocal. A voz nem sempre é o timbre, é muito difícil pegar o timbre de uma outra pessoa, a gente encontra ressonadores onde mais ou menos eu me aproxime com o timbre de alguém, mas o ritmo da fala diz muito sobre como é a pessoa, como ela fala e se coloca; A mímesis também tem muito isso de você observar o ritmo e essa maneira de declamar. Então fui muito por aí para chegar no Alphonsus. Ele, provavelmente nem era um grande declamador, isso foi muito mais dos filhos dele porque ele era muito tímido. Ele era juiz e promotor de Justiça e, às vezes, ele não conseguia nem ir às sessões por medo de ter que falar em público. Tem um texto que alguém escreveu que diz que ;Alphonsus fica bem se estiver, no máximo, com quatro pessoas.; Então imagino que ele não declamasse poesias, mas os filhos, sim, sempre tiveram essa coisa de declamar, de cantar. Tem uma música no espetáculo que é uma música que minha bisavô cantava para a minha avó, que cantava para minha mãe, que cantava para mim. Eu levei isso para o espetáculo e usei a maneira de cantar da minha tia-avó, que era filha do Alphonsus. Então fui buscando na fotografia e nos textos, nas gravações esse encontro. Fui fazendo a minha maneira, misturando tudo para chegar no que seria para mim o Alphonsus.

O cenário é composto de referências suas também, não é?
Sim, várias coisas. Não todo, mas quase todo ele é composto por referências minhas. Isso tudo aconteceu naturalmente. Fiquei muito tempo trabalhando sozinha. A Ana Cristina, que é a diretora, chamei já no final do processo para me ajudar a amarrar e a ter um olhar de fora. Mas criei sozinha tudo e, então, peguei coisas que me era caras, importantes, como um banco pesado dobrável, mineiro mesmo, que era da minha casa, mas que meus pais já devem ter trazido de Belo Horizonte e que ficou para mim; tem o banco de costura da minha mãe; tem o porta-retratos e uma fotografia que tem minha bisavó, viúva do Alphonsus, com os 14 filhos. Esse porta-retratos está na casa praticamente de todos os Guimaraens e na minha casa sempre esteve na penteadeira da minha avó. Então, desde criança eu vejo essa foto e essa foto está no cenário. São vários elementos que fui pegando e, depois, na hora de construir o cenário a gente juntou outras coisas, mas sempre coisas importantes para mim.

Aconteceu o mesmo com o figurino?
Não. O figurino foi montado com coisas que eu já vinha usando há tempos, mas acho que não tem nada que tenha sido meu ou da família. Foram coisas que peguei no acervo do Lume. A roupa que eu uso para o Alphonsus, por exemplo, era um terno que estava lá e, na primeira vez que vesti, aquilo chamou muito a minha atenção. E quando a figurinista foi criar o figurino ela disse que aquilo já estava incluído, que não tinha que arrumar outro. A ideia, na peça, é que a criança Raquel se vista do bisavô, então é uma roupa grande para mim e a ideia é essa mesmo, que fique grande e desajeitada porque é a criança que veste.

Essa criança é você, então?
É um esboço disso. Talvez o público nem compreenda porque faço mistura, mas tem essa acriança que aparece e é bem forte. Essa criança é uma mistura da Raquel com a minha mãe criança, a minha avó criança, o Alphonsus criança e lógico, a minha filha que me ajudou muito. Quando eu estava criando o espetáculo, ela tinha entre três e quatro anos e eu a observei bastante. Tem essa mistura dessas crianças e são elas que querem se encontrar com o Alphonsus se vestem dele com elementos que encontram: um paletó, uma calça, um sapato e vira essa mistura e eu fantasio esse poeta a minha maneira.


Você falou do contato com os textos e as cartas do Alphonsus. Na sua opinião, a palavra amplia a mímesis?
Sim. Para mim foi muito importante, foi um salto, tanto é que agora estou estudando isso que chamo de mímesis da palavra. No doutorado eu comecei a usar esse nome e agora eu tenho pesquisado bastante na prática com meus alunos. A palavra é interessante porque traz muitos sentidos e uma gama de imagens muito grande e uma frase é lida de maneiras diferentes pelas pessoas, porque traz referências diferentes. Essas imagens da palavra começam a trazer corporidade, o que a gente chama de dança de ações e ela preenche muito esses espaços da observação. A observação é um instrumento do ator. No nosso caso, a gente criou uma metodologia, enfim, qualquer ator tem que observar porque isso faz parte da nossa profissão.

Sempre que você observa algo você observa traços, um olhar, um gesto, você vai juntando as peças de um grande quebra-cabeças e que só se organiza e se compõe no corpo do ator. Às vezes, no caso de fotografia, por mais que você encontre maneiras de preencher aquela fotografia acaba que fica um pouco estático, você vê alguns elementos. Mas quando você traz as imagens da palavra, parece que aquilo tudo flui, como se você tivesse mais elementos para poder atuar, trazer para o corpo um universo de muito mais coisas que se encontram com o ator. Tenho gostado muito de usar a palavra, claro que trabalho muito com a palavra dita e deixar com que a palavra venha a partir do corpo. Trabalho muito também com a palavra não dita, com a palavra dançada, atuada e no espetáculo isso acontece.
Assista ao clipe do espetáculo Alphonsus:
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Pode-se dizer que você dança com a palavra?
Sim. No espetáculo acontece muito isso. Atuo esse Alphonsus quase em silêncio, não tem tanta palavra. Ele acontece em um outro espaço de subtexto, mas as palavras estão todas lá e são um pouco um segredo meu.

Essa relação ancestral com a palavra, que está muito viva na figura do seu bisavô ; um importante poeta simbolista ; foi importante no lidar com a palavra ou isso é uma coisa sua, independente dessa relação?

Talvez não tenha essa relação ainda. A relação se dá mais por causa do teatro. Escolhi uma profissão que a gente lida o tempo inteiro com a palavra e acho que talvez seja mais pela minha escolha profissional que propriamente pela relação familiar, que tem muito a ver com esse espaço, lugar da arte, do artista. Essa é a primeira vez que quis criar sozinha, estar sozinha na sala. Eu me encontrei muito com o Alphonsus nisso, porque ele se coloca como o solitário de Mariana, um solitário em uma família de 14 filhos. Acho que a solidão dele é a do escritor, do poeta. Conheço a casa onde ele viveu em Mariana, que hoje em dia é o museu e a diretora de lá sabe muitas histórias sobre a casa, sobre a família e ela conta que a frente da casa, que é um sobrado, fazia parte do comércio, que não era da família. No fundo desse local comercial, havia um escritório pequeno, onde ele escrevia e, em cima, era a casa mesmo. Ele ficava escondido naquele lugar, ali era a vida e o espaço de solidão dele. Ele sempre mostrou o desejo de um dia sair de Minas Gerais e ter outras oportunidades, mas a vida dele era aquela: um filho atrás do outro e trabalhava como juiz. E eu vivi um pouco isso, de estar sozinha na minha sala, na minha criação. O artista tem isso, mesmo os atores têm esse momento de olhar para dentro um pouco.


Serviço
Projeto Alvorada das Artes
Alphonsus
De 23 e 24 de janeiro, às 21h (sábado) e 20h (domingo). Teatro Brasília (Hotel Royal Tulip Brasília Alvorada, SHTN Trecho 1, Conj. 1B, Bloco C, vizinho ao Palácio da Alvorada). R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Classificação indicativa: 16 anos

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