Por ter vivido a maior parte dos seus 82 anos no Rio de Janeiro, o poeta Manuel Bandeira costumava ouvir comentários sobre ter nascido no Recife ;por acidente;. Não gostava. Preferia creditar como ;acidente; o fato de ter deixado a capital pernambucana duas vezes, dos 2 aos 6 anos, e, novamente, aos 10, para dali em diante só voltar de visita. ;Mas esses quatro anos, entre os 6 e os 10, formaram a medula do meu ser intelectual e moral, e disso só eu mesmo posso ser o juiz. Eu me sinto tão autenticamente pernambucano quanto, por exemplo, Joaquim Cardozo, Mauro Mota e João Cabral de Melo;, rebatia. Esse Bandeira informal, na primeira pessoa do singular, menos poeta e mais cronista, está de volta às livrarias, às vésperas dos seus 130 anos de nascimento, lembrados em 19 de abril.
Organizada por Carlos Drummond de Andrade em 1966, a coletânea Andorinha, andorinha (Global, R$ 65) reúne quatro décadas da prosa do autor modernista (de 1925 a 1965). Fora de catálogo há cerca de 20 anos, o livro mostra um Bandeira crítico de artes visuais, de literatura, cinema, teatro, música, assim como o despojado cronista de olhos aguçados para decifrar o cotidiano. Sobre a prosa do autor de A cinza das horas, o ensaísta Davi Arrigucci Jr escreve: ;Seu fino espírito de observação e sua inteligência crítica se casam à escrita seca e límpida, moderna e clássica a uma só vez, de grande naturalidade em sua mescla saborosa do registro informal com a linguagem culta, capaz da síntese mais ágil e sagaz diante do mais espinhoso dos assuntos;.
Ainda sobre a relação com o Recife, Bandeira descreve minuciosamente a casa de estilo neoclássico onde morou na Rua da União (bairro da Boa Vista, onde hoje funciona o Espaço Pasárgada). Atém-se especialmente ao quintal, ao galinheiro, localizado ao lado do ;cambrone; (ele mesmo explica se tratar do nome dado, naquele início de século, à privada), das flores, hortaliças. ;Na rua, com os meninos da minha idade eu brincava ginasticamente, turbulentamente; no quintal sonhava na intimidade de mim mesmo. Aquele quintal era o meu pequeno mundo dentro do grande mundo da vida...;, escreveu, em 1965.
Mais adiante, em outra crônica, lembra quando aproveitava os meses de verão para tomar banho no Rio Capibaribe, nos arredores da casa do avô, na Caxangá. E recorda o terror de acordar, certo dia, para fugir de uma violenta cheia. Na memória, a imagem de um boi morto passar carregado pela força das águas.
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