Nascido em Chicago no fim do século 19 e criado na Inglaterra, Raymond Chandler cultivava algumas birras. Uma delas estava ligada à inconsistência psicológica de personagens de romances policiais. Chandler não gostava quando toda a construção do personagem derretia para satisfazer as viradas idealizadas pelo autor. A prática era muito comum na pulp-fiction dos anos 1940, mas Chandler preferia fugir desse artifício. Ele também não era californiano, como boa parte dos autores do gênero na primeira metade do século 20 e, ao contrário da maioria de seus colegas, não havia aprendido as gírias policiais convivendo com o cotidiano do crime.
Chandler era um executivo especializado em contabilidade. Esse conjunto de características fez do escritor um mestre excepcional do romance policial e por isso o escritor e roteirista Braulio Tavares não hesitou em aceitar a tradução quando a Alfaguara o procurou com uma coleção para ser reeditada entre 2015 e 2016. ;Eu tinha acabado de fazer para a Alfaguara a tradução de uma série de livros de HG Wells, e eles gostaram. Marcelo Ferroni, da Objetiva, sabia que eu gostava de literatura policial e que era fã do Chandler. Ele disse que, quando, contrataram a série, já tinham pensado em mim para tradutor;, conta.
Roteirista de séries como Sai de baixo e A pedra do reino, e do filme Besouro, Tavares adora traduzir policiais e tem um método particular de trabalho: não faz leitura preliminar antes de iniciar a tradução, mesmo que nunca tenha lido o livro. ;Acho legal porque a gente vai descobrindo o livro, vai traduzindo no escuro. Claro, às vezes é preciso voltar e corrigir algumas coisas que a gente não entendeu bem da primeira vez. Mas em qualquer livro, depois de pronta a primeira versão, eu volto ao começo pelo menos duas vezes;, conta.
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>> Cinco Perguntas para Braulio Tavares
Qual foi o maior desafio da tradução?
A questão das gírias. Um dos diferenciais que ele tinha era o de colocar muitas gírias do submundo, que ele pesquisava bastante; ele deixou cadernos com listas e mais listas de expressões de gírias californianas que colocava nos romances e algumas outras que inventava. Uma coisa que observei nas traduções é que, muitas vezes, o tradutor brasileiro usava gírias de sua própria época e essas gírias hoje estão datadas. Se você pega algumas dos anos 1970, vai ver que de vez em quando entra uma coisa que destoa, porque não usamos mais. A gíria tende a ficar datada muito rapidamente e eu recorri a uma coisa que Chandler afirmou em uma carta: a gíria só tem valor quando é ou inventada pelo autor, ou já consagrada. O que eu faço, então? Não tenho que dar ao leitor a sensação de estar lendo um livro brasileiro de 2016, não faria o menor sentido. Tenho que dar a sensação de que ele está no diálogo de dois personagens falando gíria e que sabe que esses personagens são da Califórnia de 1940. Então uso gírias um pouco antigas, que já ficaram mais para trás, como bacana e legal, que já estão dicionarizadas, e tento dar um sabor de época, porque é uma gíria de 50 anos atrás.
Qual a relação entre a escrita do Chandler e o cinema?
Ele já tinha um olho cinematográfico para narrar as ações muito antes de começar a trabalhar em Hollywood. Inclusive, ele foi chamado a Hollywood por causa disso. Ele tem uma maneira muito visual de descrever as cenas. Onde um escritor qualquer, para resumir e ganhar tempo e espaço, descreveria uma série de ações complexas com verbos um tanto abstratos, ele sai descrevendo tudo. Parece que está fazendo uma decupagem visual. Isso, sem roteirizar, já servia como decupagem para o diretor de fotografia e os atores. Está tudo descrito de maneira muito concreta e visual. Ele tinha esse talento e acho que por isso foi para Hollywood.
Você já quis filmar alguma história dele ou já se inspirou em alguma para fazer um roteiro?
Gosto de entrar no clima quando estou traduzindo e fico vendo os filmes que ele roteirizou ou as adaptações, observando as diferenças entre o livro e o roteiro, mas os roteiros em que trabalhei aqui são todos adaptações de autores brasileiros. Nunca tive a intenção de escrever um roteiro meu de cinema policial; agora, se fizesse isso, certamente usaria as lições que têm nos livros de Chandler.
Nos últimos anos, Hollywood tem visto uma quantidade enorme de roteiros adaptados. Dizem que a criatividade acabou. O que você acha disso?
Leio muito sobre isso e acho que existe um certo consenso na crítica norte-americana e em parte da crítica brasileira de que os grandes roteiros norte-americanos não estão mais nos cinemas de Hollywood e sim nas séries de TV a cabo. Essas séries têm uma qualidade de roteiro excelente. Os melhores roteiristas, ultimamente, não estão nos filmes, embora haja bons filmes por aí. Mas o grande investimento é nas séries para a TV a cabo. São os roteiristas que tocam o projeto. O projeto é do roteirista e tudo gira em torno da figura dele. Ele, de certa forma, manda nos diretores. Sempre sonhei ver um sistema de produção de filmes onde o roteirista fosse o autor, acima do diretor e do produtor. A gente rarissimamente vê isso no cinema. E estamos vendo isso sistematicamente nas séries de TV a cabo.
Você traduz muita ficção científica. Qual a diferença para as traduções de romance policial?
A ficção científica, às vezes, requer que a gente leia o livro todo porque ela tem um universo diferente do nosso; então, é preciso se familiarizar com aquele universo, aquela fauna, aquele planeta diferente, aquele monte de elementos dramáticos que não são familiares. Primeiro leio o livro e depois vou traduzindo. No romance policial, a única surpresa que você tem é quem é o criminoso.