Se fosse vivo, o que Caio Fernando Abreu pensaria das redes sociais? Como encararia o fato de suas citações terem ultrapassado as de Clarice Lispector? E, sobretudo, como lidaria com o fato de que uma parte dessas citações são erroneamente atribuídas a ele? A jornalista e escritora Paula Dip gosta de imaginar quem seria Caio Fernando Abreu hoje, aos 67 anos, se não tivesse morrido em 25 de fevereiro de 1996, há exatas duas décadas. Ela também gosta de pensar como o amigo teria envelhecido. ;Sempre me faço essa pergunta. Ele morreu jovem, aos 47 anos;, lembra Paula, que conheceu o escritor nos anos 1970, quando iniciava no jornalismo e ele já acumulava alguns anos de experiência em veículos como Veja e O Estado de S.Paulo.
Caio Fernando Abreu pode ter morrido jovem, mas sua obra não perdeu o vigor. A universalidade, a rebeldia colhida na contracultura dos anos 1970 e a capacidade de tocar os leitores ao falar de temas existenciais fizeram do escritor nascido no interior do Rio Grande do Sul um autor pop atemporal. ;Não apenas porque ele a escreveu na juventude, mas principalmente porque ela trata de temas universais que interessam a todos. Nesse sentido o Caio não envelheceu, é um clássico, será sempre atual, não porque sua literatura tenha seguido determinadas regras de composição poética, dramatúrgica ou literária, mas porque sua obra tocou, como ele mesmo dizia, ;no mais fundo de todos nós;.
É esse mergulho na alma humana que faz da obra dele uma literatura sempre presente na vida da gente;, acredita Paula, autora de Para sempre teu, Caio F., uma reunião de cartas e depoimentos sobre o escritor.
Para lembrar os 20 anos da morte do autor, o livro de Paula vai ganhar uma reedição compacta e revisada, com o roteiro do filme homônimo, lançado em 2014 e dirigido por Candé Salles. Além disso, a jornalista prepara um livro de cartas trocadas entre Caio e Hilda Hilst, que será lançado pela José Olympio, e o Cine Santander Cultural de Porto Alegre vai exibir quatro longas e três curtas-metragens baseados em livros e contos do autor. Hoje, haverá ainda o evento Sessão Especial Caio F. ; 20 anos de memórias, com painel de diretores que conheceram o escritor ou adaptaram seus textos para o cinema e o teatro. Palestras, exposições e leituras também estão programadas em São Paulo para 12 de setembro, data em que Caio completaria 68 anos.
Trechos de livros
O dia em que urano entrou em escorpião, de Morangos mofados
Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estréias em sessões da meia- noite e gente se encontrando e motos correndo e tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria alheia ou tentando descobrir alguma lasca de carne nas sobras frias da galinha de meio-dia. Uma vez renunciado ao sábado, os três ali ouvindo um velho Pink Floyd baixinho para que, como da outra vez, os vizinhos não reclamassem e viessem a polícia e o síndico ameaçando aos berros acabar com aquele antro (eles não gostavam da expressão, mas era assim mesmo que os vizinhos, o síndico e a polícia gritavam, jogando livros de segunda mão e almofadas indianas para todos os lados, como se esperassem encontrar alguma coisa proibida) - renunciando pois ao sábado, e tacitamente estabelecida a paz com o baixo volume do som e a quase nenhuma curiosidade em relação uns aos outros, já que se conheciam há muito tempo, eles não queriam ser sacudidos no seu sossego sábia e modestamente conquistado, desde que a noite anterior revelara carteiras e bolsos vazios.
Os dragões não conhecem o paraíso
Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro ; agora, que cor? ;, e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim ; de fora, de dentro da casa ;, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.
; Tu não avisou que vinha ; ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele
não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade,
seja-bem-vindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido,
naquele cheiro conhecido ; cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne
velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na
testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.
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