Alexandre de Paula
postado em 20/03/2016 07:38
Killgrave, da série Jessica Jones, não é um vilão comum. Ele tem, sim, um poder, mas não é o de levantar carros, voar pelos céus ou soltar chamas de fogo pelas mãos. Seu grande triunfo é controlar mentes. E usa isso para que todas as pessoas ajam de acordo com as vontades dele. Jessica Jones, protagonista da série, é uma das vítimas do personagem. Dominada por ele e, seguindo suas ordens, matou, foi estuprada, entre outras ações que não desejava.
No mundo real, não é possível controlar mentes como faz Killgrave, mas o domínio exercido por esse vilão revela um típico caso de relacionamento abusivo. Muitas vezes ignorado, esse tipo de relação está presente em várias produções do mundo pop. Filmes, novelas e livros abordam situações em que o desejo de uma pessoa é superado pelo controle de outra.
A importância dessas representações varia de acordo com a forma com que os personagens são representados, acredita a professora e cineasta Rosa Berardo, especialista nas relações entre produção audiovisual e questões de gênero. ;Construir personagens enquadrados num sistema opressor, seja qual ele for, serve para alertar sobre comportamentos de submissão ou de opressão;, afirma. Reconhece que apresentam os temas de uma maneira diferente têm o poder de incomodar o público e colocar em cheque valores antigos e prejudiciais, ou seja, faz com que as pessoas reflitam e identifiquem o maléfico controle.
A professora, doutora em cinema pela Sorbonne e pós-doutora pela Université du Québec à Montreal, cita a própria série Jessica Jones e algumas novelas como exemplo que, certamente, tiveram impacto positivo. No caso das telenovelas, ela acredita que personagens que conseguem denunciar os abusadores e se livrar do domínio influenciam reações positivas do público. ;Isso certamente deve ter inspirado espectadoras que passavam por situação semelhante a questionar seu papel como mulher e a almejar uma mudança;, destaca.
Cinquenta tons de cinza, Game of thrones, Crepúsculo são exemplos de outras produções culturais de grande sucesso que apresentam relacionamentos abusivos, embora nelas, muitas vezes, o questionamento ao comportamento nocivo não apareça.
A exposição do tema é importante para mostrar para as pessoas que esse tipo de relacionamento existe e é grave, acredita o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos. ;Muita gente mal se dá conta de que sofre abuso, às vezes, pelos próprios companheiros. É importante que isso seja denunciado;, completa.
Autor do livro Ciúme ; O lado amargo do amor (ed. Ágora), o psiquiatra ressalta que esse tipo de relação não se resume a casos conjugais e pode ocorrer em qualquer relação em que alguém se coloque em posição superior ao outro e use isso para controlá-lo. ;É uma situação em que existe uma pessoa exercendo sobre outra um efeito de destruição psicológica, que a faz renunciar aos próprios desejos e vontades;, explica.
Na maioria dos casos de relacionamento abusivos representados nas produções culturais, a vítima é mulher. No dia-a-dia, o panorama não é diferente, elas são as principais atingidas pelo problema. ;Isso tem a ver com o nosso machismo. Há mudanças acontecendo, as mulheres estão mais ativas, mas na nossa cultura em qualquer relação ela já parte de uma posição supostamente inferior ao homem;, explica.
Apesar de a relevância de temas como esse ter aumentado nas produções da cultura pop, a professora Rosa Berardo acredita que ainda . há muito o que se conquistar em termos de representação nas narrativas midiáticas.