Diversão e Arte

Em tempos de intolerância, livros ajudam no debate político com humor

Livros de autores brasileiros tomam as cenas política e social recentes para contribuir com o debate sobre o momento

Nahima Maciel
postado em 27/03/2016 07:12

Marcia Tiburi vê traços de autoritarismo nos últimos acontecimentos no Brasil

O diálogo é uma das armas mais potentes contra o autoritarismo. Na troca de ideias, na disposição e abertura para ouvir o outro e no esforço em compreendê-lo repousa o segredo da prática de dialogar, mas ela anda em falta no Brasil e no mundo. Para a filósofa Marcia Tiburi, a ausência desse ingrediente vital nas relações humanas arrasta os homens por uma correnteza perigosa. As polarizações cegas diante da crise política relegam o bom senso e o diálogo a um segundo plano e esbarram em discursos autoritários. É sobre essa falta de trocas sensatas que Marcia trata em Como conversar com um fascista ; Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, uma compilação de 67 textos sobre temas que vão da política ao estupro. Na quarta-feira, a autora estará em Brasília para lançar o livro na Fnac.

Parte dos textos foram escritos e publicados no blog da autora no site da revista Cult, mas outros são inéditos. O título vem de um artigo divulgado na internet no qual Marcia fala do ódio sistêmico observado nas relações sociais e suscitado por temas como homofobia, violência doméstica e contra a mulher, genocídio indígena, racismo e política. A democracia como sociedade inclusiva e igualitária está ameaçada e essa também é uma das preocupações da filósofa. Falta, ela acredita, reflexão nas discussões. ;A reflexão seria fazer com que as pessoas pensassem mais. No nível de fascismo que a gente está vivendo, as pessoas estão com dificuldade de se relacionar com qualquer tipo de questionamento;, acredita.

Para Marcia, o brasileiro sofre de um analfabetismo político que leva à intolerância. Os enfrentamentos vistos nas últimas manifestações de rua e as tensões que pululam nas redes sociais e desfazem amizades são produtos da falta de diálogo e da imaturidade para a discussão política. Os radicalismos e seus discursos autoritários não são privilégios do Brasil. ;Meu livro está saindo em 11 países. É sinal de que, infelizmente, é um fenômeno global que tem a ver, certamente, com a crise do capitalismo. Nos momentos históricos em que o capitalismo entrou em crise, o fascismo reapareceu. E ele não reaparece simplesmente pela insatisfação das pessoas, ele aparece como uma estrutura de manipulação. O próprio capitalismo providencia que as pessoas entrem em um curto-circuito reflexivo emocional que as torna fanáticas, fundamentalistas, agressivas do ponto de vista do argumento;, garante.

Entrevista Marcia Tiburi

Em um dos textos, você fala que existiria uma democracia que deve aparecer realizada e outra que é da ordem do sonho. Nessa escala, onde acha que o Brasil está hoje?
A gente está vivendo um forte desejo de democracia no Brasil. A democracia nunca escapa do desejo. Ela não existe. O próprio conceito de democracia depende de um desejo de democracia, mas ao mesmo tempo o capitalismo e os regimes autoritários sempre usaram a democracia como um valor quase econômico, como se ela fosse transformada numa máscara, num tapume, numa ideologia. Acho que hoje as manifestações coletivas e individuais, seja nas ruas ou na internet, também se dão em nome de uma democracia, como se na ação dessas pessoas a democracia funcionasse bem como figura distorcida. E distorcer é fundamental para exercer poder sobre o outro. Se a personalidade é autoritária, e se a mentalidade geral e coletiva é autoritária, é porque houve essa prática desse poder contra outro, desse poder que não reconhece o outro, que quer destruir o outro. E aí pode ser o outro como sociedade, o outro partido político, o outro como o povo, a população diferente, mas também o outro que encontro e que acho, como um bom fascista, que tenho o direito de agredir porque ele está com uma camisa vermelha.

Você acha que a gente está muito próximo de uma sociedade autoritária?
Acho que estamos num momento perigoso e intenso. Nesse momento a gente está vivendo não apenas aqueles aspectos mais potenciais do fascismo, que são os preconceitos e uma certa gritaria. Não é só esse potencial fascista que tem sido vivido, mas há manifestações muito concretas. Não é mais aquela ideologia à parte, pura e simples, do indivíduo com um certo mal-estar. A gente está vivendo isso no nível das ruas, das instituições, com um judiciário espetacular. Isso é totalmente fascista, eles têm realizado realmente o conceito.

A violência contra a mulher também nasce de uma lógica autoritária e você fala disso em A lógica do estupro. Por que não conseguimos superar e eliminar esse tipo de comportamento?
Temos aí um outro problema, o da personalidade autoritária. Coloquei textos com temáticas feministas para associar a personalidade autoritária com o machismo. Tem tudo a ver. A lógica do estupro se define por uma negação absoluta do outro e, no caso, eu quis comentar sobre a negação do outro enquanto mulher. Existe um olhar instaurado na cultura que define a violência contra a mulher como uma constante cultural, que vê a mulher como um objeto, uma coisa a ser caçada e destruída quando não cede ao desejo masculino, que é correspondente do capitalismo, com um olhar que rebaixa uma mulher a uma coisa. O capitalismo também rebaixa o corpo não só da mulher, mas do trabalhador, do negro. Queria mostrar como isso está instaurado na lógica própria do pensamento Ocidental. Como a gente vai se livrar disso se todos os nossos sistemas, éticos, políticos, epistemológicos estão amparados num jeito de pensar que já é a negação do outro?


Como você enxerga essa polarização do país e o reflexo disso nas redes sociais?
A internet capitalizou o verbal como nunca. O verbal sempre foi para ser capitalizado, veja a história da retórica, do discurso, da igreja: o discurso sempre foi hipervalorizado. Agora, a internet democratizou a um nível da banalização. Todo mundo pode. E que todo mundo possa não deveria levar a que todo mundo faça qualquer coisa simplesmente porque é possível fazer. Como as falas não são elaboradas, porque as pessoas que falam não passaram por mediações qualificadas, não se informaram, não pesquisaram, não conversaram, não analisaram, então temos essa repetição bizarra de discursos agressivos e violentos cuja fonte é uma certa imprensa. Isso é uma pena porque a imprensa, que poderia ajudar no processo de esclarecimento da população, tem conduzido as pessoas a um clima de ignorância, estupidez e agressividade. Só que esse ódio vem sendo administrado. O ódio é um sentimento administrado pelos meios de comunicação, do mesmo modo que a igreja administrava o ódio contra as bruxas e os judeus. Todos os regimes políticos administraram o ódio. Esses afetos têm funções e podem conduzir a população a determinados atos, então temos que prestar atenção nisso.

É possível fugir das polarizações? Como?
É possível escapar, superar essa dicotomia. Esse pensamento que funciona por oposição é um pensamento binário, que funciona operando entre identidade e diferença, entre eu mesmo e o outro, ele não é dialético, desconsidera que existe uma mútua afetação, que existe uma arrolação e essa arrolação não é estanque entre duas partes. O que a gente vê no Brasil hoje por exemplo, é que as pessoas que lutam contra a corrupção, que usam o termo corrupção como um baluarte de posicionamento político, muitas vezes são elas mesmas corruptas, ou agem de maneira corrompida, mas não costumam refletir sobre essa contradição.

E como resolver isso?
Se a gente quisesse resolver isso em termos muito práticos, precisaríamos produzir dois fenômenos. Um é a reflexão, porque estamos numa sociedade vazia de pensamento. precisamos que as pessoas se questionem, percebam qual a contradição entre a sociedade e suas próprias posições. Outra coisa que a gente poderia também promover -- e sem isso não temos futuro -- é o diálogo. Precisamos disso, até porque o diálogo melhora nosso pensamento. Quando dialogo com alguém, tenho que me abrir para outra pessoa, tenho que estar atenta ao que ela tem para me propor. A relação com o outro me coloca em dúvida. Na nossa atual cena política, as pessoas não têm dúvidas. As pessoas têm certeza do que elas tão fazendo, têm certeza dos seus posicionamentos e parecem sujeitos de um saber absoluto em relação a tudo. Isso é assustador.


Como nos tornamos a sociedade vazia de pensamento que você citou?

As pessoas não conseguem mais ter nenhum nível de abertura para o outro, aquele que está presente. Funciona, a meu ver, quase que por flutuação. Em certas épocas, as manifestações fascistas se tornam mais radicais. E aí, claro, eu estou usando o termo fascista no sentido da personalidade autoritária, no sentido da introjeção do autoritarismo no nível da experiência do sujeito que deveria ser um cidadão, que poderia ter desenvolvido sua cidadania. Mas o fascismo que ele desenvolve é uma espécie de contrário à cidadania. Quando alguém não consegue ser um cidadão, ou ele é destruído ou vira a caricatura à direita, que é o fascista, que é uma caricatura política.

Se o brasileiro fosse mais instruído politicamente se sairia melhor?
A gente tem o analfabeto funcional e o analfabeto político, que são muito próximos hoje em dia. Essa comparação é totalmente viável. A gente teria que questionar que tipo de educação as pessoas receberam. No Brasil, a educação vem sendo abandonada há muito tempo. Não temos uma educação que proponha uma discussão sobre a sociedade. Se você lembrar, o ensino de filosofia veio para o ensino médio e se tornou obrigatório há sete, oito anos. Nos falta uma educação que desenvolvesse a cidadania das pessoas. Para que isso aconteça, a gente precisa não só ter um currículo voltado para as humanidades, para as disciplinas mais críticas, mas também para a sensibilidade. Tinha que ter um projeto de educação que pensasse que país a gente vai ter no futuro.

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