São Paulo ; Arquitetura é arte, mas não pode ignorar o contexto no qual nasce. Parece óbvio, mas não é. O francês Jean Nouvel enxerga na contemporaneidade algumas ocasiões nas quais a arquitetura anda perigosamente desagarrada do contexto. Quando isso acontece, quem paga a conta são as gerações seguintes, obrigadas a conviver com projetos e escolhas nem sempre adequados. Nouvel esteve em São Paulo na semana passada para conferir a fundação do prédio que projetou para a Cidade Matarazzo. A Torre Rosewood faz parte da revitalização do antigo hospital, um conjunto de prédios do início do século 20, tombados e adquiridos pelo grupo francês Allard. A ideia é restaurar o complexo e transformá-lo em um centro cultural e comercial. A torre de Nouvel vai ter apartamentos residenciais e um hotel.
O projeto tem diálogo bastante óbvio com o que o autor chama de contexto. Muita madeira para lembrar o pau-brasil, andares em desnível com varandas inundadas de plantas, referência fácil ao país, e bastante transparência para captar a luz tropical. Serão, no total, 122 unidades a R$ 33 mil o m;, sendo que as menores terão 100m;. Os números são sempre milionários quando se trata de nomes como Jean Nouvel. Ele faz parte de uma geração que viu a arquitetura ganhar importância como instrumento de revitalização e valorização de cidades e áreas degradadas.
[SAIBAMAIS]
Quando Frank Gehry projetou o Museu Guggenheim de Bilbao (Espanha), nos anos 1990, percebeu-se que a assinatura de uma estrela da arquitetura poderia revitalizar e até trazer lucratividade para regiões abandonadas ou desvalorizadas. Na esteira desse fenômeno, cresceram nomes como Nouvel, Rem Koolhass, Zaha Hadid, Renzo Piano, Norman Foster e os suíços da Herzog& Meuron, todos vencedores do Prêmio Pritzker.
Nouvel assina alguns prédios que viraram ícones nas cidades onde foram construídos. É dele o Institut du Monde Arabe, em Paris, um edifício com fachada metálica marcada por desenhos que lembram os mosaicos árabes e abrem e fecham conforme o momento do dia e a luminosidade. A Fondation Cartier e o Musée du Quai Branly, dedicado à arte etnográfica, também levam a assinatura do arquiteto.
Recentemente, ele foi alvo de uma disputa judicial depois de pedir que seu nome fosse retirado do projeto da Philarmonie de Paris, a maior e mais nova sala de concertos da capital francesa. Nouvel ficou irritado com algumas modificações feitas no prédio, mas perdeu na Justiça o direito de ter seu nome riscado da obra. Ele assina ainda o Museu do Louvre de Abu Dabi, que tem inauguração prevista para este ano, e o Museu Nacional do Catar, cuja formato é inspirado em uma rosa dos ventos.
O arquiteto é defensor da ideia de que sua atividade deve levar em conta o contexto e dialogar com a história, a geografia e a época em que é concebida. Ele critica a arquitetura pós-moderna, que acusa de, muitas vezes, ignorar o contexto. Nouvel também não gosta da maneira como a arquitetura se afastou do urbanismo e dos centros de poder responsáveis pelas decisões quanto ao espaço urbano. Para ele, o resultado de escolhas ruins está em praticamente todas as metrópoles e reflete no cotidiano dos habitantes.
Crítico declarado de cidades novas, ele admira Oscar Niemeyer, que chama de deus, e celebra o vocabulário simbólico criado pelo brasileiro. No entanto, Nouvel não é um fã de cidades projetadas como Brasília, na qual esteve uma única vez, nos anos 1980. ;Não gosto das cidades novas, como princípio geral. Acho que ali tem a cidade oficial e tem o resto. Brasília é uma cidade surpreendente, de decisões políticas, é uma criação simbólica. Mas não é uma cidade no verdadeiro sentido, no sentido da animação e da tensão. É uma cidade oficial com serviços em volta;, acredita. Em entrevista durante a visita a São Paulo, Nouvel falou sobre a poesia necessária à arquitetura, o papel da política e a importância do contexto.
Entrevista/ Jean Nouvel
Em arquitetura, vale mais e liberdade ou forma?
A arquitetura não é o mundo da liberdade, a arquitetura é o mundo das imposições. Primeiro, é uma arte, e nós esquecemos disso. A arquitetura é a arte de brincar com as imposições, com as restrições. Por isso, a autoarquitetura não existe. A arquitetura é conseguir, por meio das obrigações sociais, das funções e das realidades econômicas e técnicas, expressar algo a mais e, justamente, é essa sua dimensão artística. Mas os meios que são colocados em obra são meios obrigatórios, somos obrigados a construir em coisas sólidas, sob regulamentos, não é uma obra etérea, o que não quer dizer que não seja uma obra sensível.
Você critica a separação entre arquitetura e os centros de poder. Por que isso aconteceu?
Eu digo sempre que o grande desastre hoje é que o papel social do arquiteto é definir os locais de vida em termos de sensibilidade e em termos de humanismo, de poesia, mas agora todas as decisões que são tomadas, as decisões iniciais, são decisões longe dessas preocupações. A cultura arquitetural foi afastada. Há uma inconsciência política em relação a isso. E há uma colocação em evidência das contradições econômicas que fazem com que a arquitetura se torne um enorme desafio econômico. E as empresas tomaram o poder sobre isso. Os engenheiros tomaram o poder por meio, sobretudo, do urbanismo ao dizer como deve se desenvolver uma cidade, que densidade deve estar onde. Por isso, com frequência nos encontramos em condições arquiteturais idiotas. Hoje, mais a arquitetura é rural e melhor ela funciona, mais ela é isolada, melhor funciona. Quanto mais urbana, mais catastrófica.
Qual seria a solução?
É fundamental que o papel social do arquiteto seja reconquistado. Não pelos arquitetos, mas para que seja entendido que as opções iniciais são opções que vão ter influência considerável no modo de vida dos habitantes de uma geração. Não se trata de agradar ao arquiteto, porque algumas más-línguas vão dizer que o arquiteto quer agradar a ele mesmo, mas se trata de agradar aos outros. Se o arquiteto não estiver mais aqui não haverá ninguém no mundo econômico e político para defender o prazer de viver dos habitantes do local. Não haverá ninguém para pensar profundamente de que forma deveremos viver e de que maneira poderemos habitar no sentido mais amplo do termo. Aliás, quando se trata de habitar os políticos estão cegos por completo. As habitações hoje são menores que nos anos 1960 e 1970 e são mais caros.
E que consequências isso tem na vida das pessoas?
Agora, se enfia uma família em um apartamento de 60m; e não são condições dignas, então claro que isso vai se virar, em algum momento, contra aqueles que fabricaram isso. Na França nós vimos isso com nosso terrorismo recente. Esses terroristas são jovens que estavam na nossa periferia e que têm um certo rancor contra as condições que impusemos a eles. Isso se completa, claro, com outras coisas, mas começa assim. Todos os governos permitiram que isso fosse feito e a segregação estava na origem disso. A arquitetura é, ao mesmo tempo, levar em conta essas condições iniciais da maneira mais hedonista possível, com o prazer de uma dimensão que não deve ser esquecida porque é uma dimensão que também leva em conta o respeito.
Por que não há então grandes arquitetos pensando os projetos sociais?
Eu sempre lutei por isso. Com Nemausus (projeto de habitação social em N;mes, França), mostrei que podemos fazer habitações duas vezes maiores, com varandas, pelo mesmo preço. Mas quando você prova isso, todo o mundo econômico cai em cima de você. Todo o mundo social, dos organismos sociais que fazem a gestão disso, cai em cima de você. As empresas também. Há algo que precisa ser revisto aí. É uma luta minha agora tratar do papel social do arquiteto, que deve estar na origem das transformações e decisões. Não se pode mais decidir sobre as localizações, as densidades, as zonas de tal forma que depois as condições de uma arquitetura se tornam impossíveis posteriormente.
A era que começou com Bilbao e uma arquitetura milionária está acabando por conta da crise econômica e da austeridade?
Estamos falando de duas coisas. Esse museu tinha como missão revitalizar a cidade e conseguiu realizar essa missão. Pode se dizer que é uma arquitetura que teve um papel social e não é uma arquitetura tão cara assim, mesmo sendo privada. Há, em certos momentos, arquiteturas que podem se expressar em programas excepcionais e isso existirá sempre, ainda bem,. Ainda bem que as cidades, os estados, os países ainda traduzem, por meio de suas construções, sua situação. E tenham vontade de reconquistar uma situação que está comprometida, fazendo de certos locais lugares fortes e atrativos. Isso é ótimo. O papel da arquitetura também é esse. A potência emocional da arquitetura é essa.
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