Diversão e Arte

Em entrevista, Denise Fraga exalta as provocações do teatro

A atriz volta a encenar um texto de Brecht e faz sucesso com 'Galileu Galilei'

postado em 01/05/2016 07:35
A atriz volta a encenar um texto de Brecht e faz sucesso com 'Galileu Galilei'
Se fizéssemos um autorretrato falado da atriz Denise Fraga, o teatro ocuparia boa parte do depoimento. E, ao falar de teatro, a alma boa de Denise logo evocaria o mestre Bertolt Brecht, dramaturgo alemão que todos adoram venerar e montar, mas poucos conseguem, realmente, compreender. Denise é dessas. Depois de rodar o país com
Alma boa de Setsuan, a artista retorna ao universo brechtiano com Galileu Galilei. Mais do que nunca, ela acredita na força das artes cênicas como resgate de um povo órfão de educação. ;Quem lê Dostoiévski e Fernando Pessoa, no mínimo, vai sofrer mais bonito. A arte é capaz de transformar um cidadão;, afirma, sem medo. Neste papo, envolta por Brecht até a cabeça, ela só quer lhe perguntar, caro leitor: ;O que você faz com o resto de luz das noites claras?;.

O que a moveu a fazer Galileu Galilei?
É uma iniciativa, no mínimo, ousada fazer Galileu Galilei. Não é, assim, um papel para mim. Mas nada mais brechtiano que uma mulher interpretando um homem. O que está em cena não é um homem ou uma mulher, mas uma ideia. Eu queria dizer esse texto. Quando li, fiquei louca. Acho um dos textos mais completos e complexos da dramaturgia universal. Ele abre amplas possibilidades de discussão.

Por exemplo...
Fala sobre esse homem que nega a sua verdade. Que nega suas descobertas para evitar a fogueira da Inquisição. Quantos de nós não fazemos isso diariamente? Negamos coisas explícitas para não irmos para a fogueira. Seja para não perder o emprego, seja para estar bem com seu chefe, para não perder o namorado. A gente se acostumou a esse lance da venda. Ainda mais nesta sociedade na qual tudo que vale é o que rende. O que vale é o que gera dinheiro. Colocamos na gaveta projetos que fariam bem à humanidade e preferimos aqueles que rendam.

Brecht, à primeira vista, não nos remete a um espetáculo comercial. Ainda assim, o teatro está lotado.
A peça dá uma esperança ao espectador. Essa mensagem de que, mesmo nesta estrutura de poder econômico, você pode achar uma brecha para estar em dia consigo mesmo. O Galileu acabou em prisão domiciliar, vigiado pela Inquisição. E foi nessas circunstâncias que escreveu sua obra mais importante, ou seja, mesmo preso, ele segue produzindo. Ele não deixa de ser o Galileu. Esse ;ainda sou eu mesmo;, ;eu ainda tenho forças;, ;eu me reconheço; é muito forte. A peça propõe que você se recupere. Que você entenda que somos nós que fazemos a história. Mesmo quando não resistimos, não precisamos jogar a toalha. A gente vive essa realidade que nos mostra que, para estarmos bem, precisamos deixar de ser quem somos. Será?

E o que torna Brecht tão singular entre os dramaturgos?
Ele escreve com humor e ironia como poucos. Em determinado trecho da peça, Galileu fala: ;Pensar é um dos maiores prazeres da raça humana;. E eu te digo: pensar com divertimento não tem para ninguém. O Brecht nos convida a fazer uma reflexão enquanto nos divertimos. Esse é o grande lazer. Quando você não vai embora com a bolsa vazia.

Galileu teve que enfrentar o pensamento religioso e político da época, que o oprimiu e o censurou. Vivemos dias parecidos, não?
Sim, totalmente. A peça sempre será atual, mas parece que foi encomendada para este momento. Vivemos uma grande crise moral e Brecht se torna um mentor. Ele fala sobre o valor do homem político e moral. Ele nos questiona: que ética resiste à fome?

E onde ficam essas densas provocações em um panorama tomado por produções superficiais, mas de forte apelo, como musicais e stand-ups?
Em Galileu Galilei, os espectadores riem como se estivessem em um stand-up, divertem-se como se estivessem em um musical e ainda ficam agraciados por assistir a algo nobre. A peça sensibiliza o público, mas também entretém. Não estou criticando meus colegas do stand-up e dos musicais. Jamais. Temos que ter tudo. Quanto mais múltipla a cena, mais rica ela é.

Essa multiplicidade anda rara...
Eu rodo esse país inteiro desde 2003, quando passei a viajar incessantemente com meus espetáculos. Percebi que cidades com produtores culturais preguiçosos, que passaram a levar só stand-up ; e assim garantir mais dinheiro ;, contribuem para o empobrecimento cultural do lugar. E muitos não se dão conta disso. As pessoas dessas cidades vão ao stand-up achando que estão frequentando o teatro. E eu digo, ;desculpa, você não está indo ao teatro. Está indo a um show de stand-up;. É muito diferente. Teatro te leva para o sublime. Teatro te requisita para um ritual muito poderoso.

Alguma reflexão sobre o cenário político-social atual?
Vivemos dias muito estranhos, muito difíceis. Não dá para passar assoviando. Precisamos buscar essa evolução. Se não fizermos isso agora, a gente vai perder um trem, uma oportunidade. Temos que pensar, que nos comprometer, que entender, que estudar. Não há nada pior do que um analfabeto político. Quando você se priva do coletivo, fingindo que não faz parte deste lugar.

Acabamos esbarrando no lugar de sempre, a educação?
Não tem jeito. Estamos pagando o desleixo que tivemos com a educação, que não se constrói em quatro anos. Mexer na educação não é eleitoreiro. Ninguém faz uma reforma radical em pouco tempo e coloca professor com salário de ministro. Como pode professor ganhar mal? É o começo de tudo. Que país vai ser este onde os professores ganham o que ganham? Não dá para entender. É muito triste o que estamos vivendo. Toda essa reforma educacional, que aparece nas campanhas, nunca foi feita. É impossível fazer em quatro anos, então ninguém faz. A nossa crise é de material humano.

A falta de contato com a arte é uma questão de acesso econômico?
É mais uma questão de hábito. Há ingressos gratuitos por aí, temporadas populares, entradas francas, bibliotecas públicas. A internet sempre traz programas para quem está com pouca ou nenhuma grana. A gente toma por evolução a estrutura econômica, o que é uma pena. A gente acha que evoluído é quem conseguiu comprar aquele tênis. A gente só vai votar bem quando tiver cultura e educação. É por isso que temos que ir às ruas! Pelos professores. Pela reforma na educação.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação