Uma limonada bem ácida, mas muito saborosa, foi isso que Beyoncé ofereceu ao mundo na última semana, ao lançar na internet seu novo disco-filme, com 11 clipes em sequência, construindo uma narrativa forte sobre superação e libertação. O título Lemonade, bebida que os escravos acreditavam clarear a pele nos Estados Unidos, já mostra que o trabalho não é nada refrescante. Especialmente para quem ainda vê a artista como só mais uma diva pop, capaz de vender milhões de cópias apenas por conta de uma estética superproduzida e refrões dançantes. Conceitual, político, verdadeiro e polêmico, o novo álbum comprova a relevância da cantora de 34 anos para a música mundial.
Reconhecida como fenômeno pop desde sua adolescência, quando apareceu vendendo milhões de cópias entre as garotas da Destiny;s Child, Beyoncé passou boa parte da carreira solo, iniciada em 2003, emplacando hits como Single ladies e Crazy in love, de letras fáceis, melodias grudentas e cantaroláveis, sensualmente coreografadas. Premiadíssima em várias edições do Grammy, a cantora se tornou ícone do universo pop e sucesso absoluto de vendas, com suas músicas invadindo comerciais, trilhas de filmes, festas e rádios. No entanto, a moça dos cabelos alisados de outrora parece ter dado lugar a uma mulher poderosa e atuante há algum tempo, usando sua formidável voz contra o preconceito racial.
[SAIBAMAIS]
No badalado show do intervalo do Super Bowl, maior evento esportivo dos EUA, em fevereiro deste ano, a performance da artista foi devastadora. Diante da maior audiência anual da TV norte-americana, a cantora e suas dançarinas se apresentaram vestindo o uniforme usado pelo Partido dos Panteras Negras, movimento político-social antirracista surgido na Califórnia durante os anos 1960. Na coreografia, elas reproduziram um X no gramado em homenagem a Malcom X, um dos principais líderes do movimento negro do país. Um recado claríssimo sobre a violência policial que tem vitimado tantos jovens negros nos EUA e uma pista do que seria seu novo trabalho, lançado de surpresa no fim de abril.
GUETOS O empoderamento negro, principalmente o da mulher, é a alma de Lemonade, e a combinação audiovisual mostra bem isso. Em boa parte dos vídeos, as referências à cultura ;black; dão o tom, tanto nos figurinos e cenários, que transportam o espectador para os guetos de New Orleans e para as fazendas escravocratas do Sul dos Estados Unidos, quanto nos arranjos musicais que dialogam com o funk, o hip-hop, o blues e o soul. Em algumas letras, a mensagem é tocante. É o caso, por exemplo, de Forward, (Em frente, na tradução), a nona do disco, cantada em parceria com James Blake. As duas vozes poderosas são acompanhadas apenas por um piano, enquanto o clipe reúne pessoas mostrando fotos de familiares mortos pela polícia. ;É tempo de escutar, é tempo de lutar, em frente;, diz a letra.
A memória da escravidão é escancarada em Freedom (Liberdade, em português), que conta com a participação do rapper Kendrick Lamar, sendo quase um hino de libertação. Apresentado no Super Bowl, o single Formation, sobre a formação da cultura negra na América do Norte, apesar de não estar inserido na sequência de clipes aparece nos créditos e completa o áudio. Mesmo nas faixas que não tratam diretamente sobre a causa racial, Beyoncé atua como porta-voz da mulher negra, como em Sorry, que trata do fim de um relacionamento e a superação de uma traição, onde ela diz que ;ele deveria procurar Becky com seu cabelo bom;. Nos EUA, ;Becky; é o apelido para Rebeca e frequentemente usado como uma gíria para se referir ao estereótipo da mulher norte-americana branca de classe média.
Para parte da crítica internacional e da enorme legião de fãs, outro grande impacto do disco é Beyoncé falando abertamente sobre traição em suas músicas. Tudo porque a estrela teve seu casamento com o rapper Jay Z colocado em xeque há dois anos pelos noticiários de todo o mundo, que especulavam um caso de adultério por parte do cantor. Na mesma época, o vazamento de um vídeo de Jay Z sendo agredido pela irmã de Beyoncé deu força aos rumores, mas o casal de celebridades foi a público e negou tudo, garantindo que a união, iniciada em 2008, continuava estável. Os dois inclusive aparecem juntos em algumas cenas de Lemonade.
AUTOCONHECIMENTO Baseada ou não em sua experiência própria, o disco se assume como ;uma jornada de autoconhecimento e cura de todas as mulheres;. A narrativa de Lemonade coloca as mulheres negras como protagonistas em uma história de superação de subjugamentos, não apenas nas relações amorosas, mas também por parte da sociedade. O musical descreve uma linearidade que começa na intuição, segue para a raiva, negação, vazio, ressurreição e chega à redenção. O caminho é feito por uma mulher que trabalha por seu próprio dinheiro (como é evidenciado em 6 Inch), que tenta se libertar de padrões estéticos impostos, que tem uma família (como demonstra Daddy lessons) e que encontra seu próprio poder e sua própria beleza.
O que poderia ser só mais um trabalho que questiona relacionamentos, expondo frustrações e superações amorosas, com mensagens facilmente assimiláveis e comercializáveis, torna-se diferenciado quando uma causa maior é inserida no contexto. No caso, o empoderamento feminino e negro. Se no ano passado foi a vez de Lady Gaga fazer o mundo parar e refletir quando lançou Til it happens to you, que grita contra os casos de abuso e assédio sexual não denunciados nos Estados Unidos, agora é a vez de Beyconé mostrar que música pop também tem algo importante a dizer com seus clipes hollywoodianos e produções milionárias ; Lemonade foi inicialmente orçado em US$ 1,35 milhão ; feitos para estourar em todas as paradas de sucesso, vender muitas cópias, ganhar muitos Grammies e lotar estádios durante as turnês.
Lemonade foi o sexto álbum de estúdio de Beyoncé. Exibido em primeira mão pela HBO, o musical foi lançado na plataforma de música por streaming Tidal, que pertence a Jay Z, sendo a execução e download exclusivos para os assinantes do aplicativo. A turnê mundial, que carrega o nome do single Formation, começou na última quarta-feira, em Miami, quando a cantora homenageou Prince, interpretando algumas canções do astro recém-falecido. Por enquanto, o tour tem datas marcadas apenas na Europa e nos Estados Unidos. A última passagem de Beyoncé pelo Brasil foi em 2013.