Cannes (França) ; A um mês de completar 80 anos de vida, com quase cinco décadas de cinema no currículo, o inglês Ken Loach ; um mito quando o assunto é debate político nas telas ; desistiu dos planos de se aposentar e trouxe ao 69; Festival de Cannes aquele que, até o momento, é o mais aclamado entre os concorrentes à Palma de Ouro já exibidos: I, Daniel Blake. Marcada por interpretações memoráveis inclusive de não atores, a produção radiografa sequelas do desemprego e do desamparo social na Inglaterra, a partir da relação de amizade estabelecida pela sorte do acaso entre uma mãe solteira (Hayley Squires) e um cinquentão com problemas cardíacos, Daniel, vivido por Dave Johns, humorista especializado em comédias stand-up, sem nenhuma intimidade com sets de filmagem. Para Loach, o novo longa-metragem é uma denúncia da burocracia e um convite à discussão sobre formas institucionalizadas de exclusão. Em entrevista ao Correio, o realizador, já premiado com a Palma dourada, por Ventos da liberdade (2006), fala sobre suas escolhas estéticas e compartilha suas preocupações sobre o Brasil.
ENTREVISTA/ Ken Loach
Pelo que vemos em I, Daniel Blake, a burocracia estatal inglesa relega os desempregados a uma condição de humilhante subsistência. Existe alguma reforma política em vista que mude essa situação?
Em 2017, completo 50 anos como cineasta e, nesse período todo, sempre retratei a questão do desemprego pela minha perplexidade em perceber que o Estado, não apenas na Inglaterra, mas também em outros países da Europa, parece culpabilizar os desempregados pela sua demissão. Se você estudar como os centros de assistência do governo lidam com as pessoas, vai notar que há sempre algum argumento para fazer as pessoas acreditarem que elas foram demitidas por alguma falha pessoal. Existe um cenário de vulnerabilidade em torno dessas pessoas que alimenta uma dramaturgia crítica. Chegamos a somar 4 milhões de desempregados no Reino Unido. Escolhi fazer esse filme em Newcastle, uma cidadezinha a 450km ao norte de Londres, pela tradição local de lutas sindicais, a fim de gerar uma reflexão sobre a continuidade dessa prática de exclusão a pessoas à procura de emprego. Eu não quero apenas emocionar com esse filme: quero deixar o público com raiva e fazê-lo reagir.
Cannes se rendeu à força de seus atores, sobretudo Dave Johns,como é comum em seu cinema. Como é o seu método para dirigir pessoas sem experiência de set e para lidar com atores profissionais?
Tenho muita facilidade de lidar com atores porque eles, em geral, são pessoas com muita imaginação e com potencial para explorar as próprias fragilidades. Em I, Daniel Blake, por exemplo, quando eu vou até ONGs de apoio a famintos, os atendentes que eu filmo não são atores, e sim pessoas que trabalham ali. Sigo a cartilha neorrealista de Rossellini nesse aspecto. Como fazer esse processo dar certo? Basta filmar o roteiro na ordem que a história é contada, revelando parte a parte da trama para os atores, porque assim você cria uma sensação de mútua descoberta, que tira a hierarquia da direção sobre o elenco. Estamos aprendendo juntos, os atores e eu, que filme estamos rodando.
Em 23 de junho, a Inglaterra tem pela frente um referendo para decidir se permanece ou não na União Europeia. Qual é a sua posição acerca dessa escolha?
Pela primeira vez depois de quase duas décadas, temos na figura de David Cameron um primeiro-ministro que se preocupa com o bem-estar da população e não apenas com negócios. Essa escolha é uma decisão tática que envolve o quanto a Inglaterra pode lucrar se sair. Não é claro ainda o que temos a ganhar nem o que temos a perder se continuarmos. Mas é necessário levar em conta que a União nasceu de uma filosofia liberal e esse aspecto precisa ser respeitado em nome da democracia.
Como o senhor encara a atual situação política do Brasil, com o afastamento da presidente Dilma Rousseff?
Você tem alguma dúvida de que isso foi um golpe de Estado? Eu não tenho. Minha maior dúvida é saber se os Jogos Olímpicos ainda vão acontecer apesar de todo esse conflito de poder. Acho que alguém precisa retratar essa instabilidade brasileira já. Mas para que eu pudesse fazer isso, precisaria de alguém bem próximo que falasse português e estivesse inserido no contexto. Não é o caso. Teria que ser alguém de dentro, mas que pudesse fazer o retrato da cena local com distanciamento.
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