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De X-Men a Superman: o que há de religioso nos super-heróis modernos

Autor de tese de doutorado sobre a religião nas HQs, Iuri Reblin comenta personagens dos quadrinhos

postado em 19/05/2016 09:05

Autor de tese de doutorado sobre a religião nas HQs, Iuri Reblin comenta personagens dos quadrinhos

Com sessões em pré-estreia a partir de hoje (18), X-Men: Apocalipse chega às salas de cinema trazendo um roteiro cheio de referências religiosas. Do vilão que dá o título do filme à reunião de quatro cavaleiros apocalípticos, o roteiro mostra ainda questionamentos da fé de Magneto (Michael Fassbender), judeu sobrevivente dos campos de concentração da Alemanha nazista, e a estreia do mutante católico Noturno (Kodi Smit-McPhee).

A religião, aliás, é tema presente em narrativas de outros super-heróis, seja em filmes ou HQs. E já que o assunto está em alta, aproveitamos para conversar com Iuri Reblin, doutor em teologia e autor de uma tese sobre a religiosidade presente nas histórias em quadrinhos. Confira abaixo:

É comum se dizer que super-heróis como uma nova representação para deuses e semideuses. Você concorda com a afirmação?


Não necessariamente. Explico: super-heróis são, sim, em muitos aspectos, uma nova representação para deuses e semideuses. Se nós pegarmos uma alusão explícita, Thor é o personagem mais icônico. A pesquisa de Helio Teixeira evidencia, por exemplo, que até poucas décadas atrás, o filho do Odin era venerado e cultuado como Deus no norte da Noruega e da Finlândia. Na Islândia, há, inclusive, um movimento de retomada dessa devoção. No entanto, vale dizer que o deus Thor é bem diferente de sua representação nos quadrinhos, muito embora seja mesmo uma alegoria nessa direção. Se pegarmos uma alusão implícita, partindo daquilo que faz o personagem ser um super-herói, também temos um tipo de representação divina, porque super-heróis são essencialmente figuras salvadoras num nível que heróis não conseguem ser, justamente por conta do uso dos superpoderes e suas naturezas incomuns. Mas nem todo super-herói é uma nova representação para essas figuras; são, antes de tudo, uma representação de nós mesmos e daquilo que ora desejamos ser, ora tememos ser: pessoas melhores (às vezes, nem tanto), capazes de nos ajudarmos mutuamente, com forte senso de justiça (às vezes deturpado) e com liberdade de ação. E quando falamos em representações, personagens sempre serão um retrato difuso de nós mesmos, misturando diferentes elementos simultaneamente.

Você enxerga diferenças nas abordagens entre as duas principais editoras de quadrinhos?


Posto de uma maneira simples e um tanto dualista, eu diria que os personagens da DC Comics (Superman, Mulher-Maravilha e Shazam) expressam uma representação aspirada para um tipo de divindade ou deidade de nosso imaginário religioso coletivo. Já os personagens da Marvel Comics (Homem-Aranha, X-Men, Hulk) forjam uma representação aspirada a um retrato alegórico da vida humana. No fundo, ambos são retratos alegóricos da vida humana, o que os distingue, é, no fundo, a intencionalidade da narrativa.

O teólogo Iuri Reblin pesquisa a relação entre religião e super-heróis.
O teólogo Iuri Reblin pesquisa a relação entre religião e super-heróis.


Embora nos filmes recentes comparem, simbolicamente, Superman a Jesus, o personagem foi criado por uma dupla de artistas judeus. Você acha que é possível enxergar o herói sob a ótica de uma única religião?


Não é possível enxergar o herói sob a ótica de uma única religião, mesmo porque, enquanto personagem construído simbolicamente como ser divino, ele vai representar valores que podem ser comuns em mais religiões (amar os inimigos, ajudar ao próximo, o altruísmo etc.). Então, diversos personagens, ou melhor, diversas histórias podem apresentar esses valores como parâmetros. Não podemos nos esquecer que os super-heróis são personagens estadunidenses e, enquanto tais, refletem o universo cultural-simbólico daquele país. E, estamos falando de um país majoritariamente protestante, proveniente de uma colonização puritana, e de uma religiosidade fortemente fundamentalista. Essas características encontram-se indelevelmente inscritas em todas as narrativas. A própria invenção do super-herói, tal como nos é apresentada, só foi possível num país como os Estados Unidos, consideradas essas características, em especial, com a pretensão de o super-herói ser um salvador global, por exemplo.

Por qual motivo você acredita que autores coloquem elementos religiosos em narrativas de quadrinhos?


Porque a religião é parte indelével da vida humana. É ela que lida com nossos maiores temores e também com nossas maiores esperanças. Autores não inserem elementos religiosos nas histórias em quadrinhos necessariamente (ou exclusivamente) por serem crentes ou não, mas, sim, porque a religião lida com valores ultimais que aspiramos e que são capazes de dar à própria vida humana a sua raison d;etre. A carga religiosa não se refere apenas a alegorias do universo religioso, mas ao sentido profundo que dá o horizonte ao nosso caminhar.

O Coisa, do Quarteto Fantástico, é judeu. Marvel Comics/Divulgação
O Coisa, do Quarteto Fantástico, é judeu. Marvel Comics/Divulgação


[SAIBAMAIS]Algumas histórias trazem não só representações simbólicas como mostram heróis adeptos de certas religiões. Quais personagens você destacaria?


Vários personagens possuem uma pertença religiosa (ora praticante, ora não praticante). Na série Superman: as quatro estações, Clark Kent é metodista. Ben Grimm, o Coisa (do Quarteto Fantástico), é judeu. Presenciamos, inclusive seu segundo Bar Mitzvah em uma história em quadrinhos. Peter Parker possui em sua personalidade características protestantes explícitas, como sua culpa e sua angústia kierkegaardiana constantes. Há muitas narrativas com características religiosas, muito mais do que imaginamos, sobretudo, porque a religião nas histórias em quadrinhos não é simplesmente a alegoria usual (anjos, demônios, cruz, inferno, e todo o imaginário religioso que integra nosso cotidiano). O religioso nos quadrinhos remete a uma busca pelo sentido acerca do viver e do morrer. Isso significa que, numa perspectiva ampla, sempre que estou lidando com a tensão entre a vida e a morte numa perspectiva existencial ultimal, estou lidando com religião. E, nessa direção, autores sempre vão colocar uma carga religiosa em suas narrativas, porque a religião é parte indelével da vida humana.

Quando pensamos em X-Men, logo vem à mente questões como preconceito e tolerância, mas algumas histórias e o filme atual abordam questões religiosas também. Qual o peso que a religião tem para esses personagens?


O grande barato de X-Men, ao meu ver, é pelo fato de eles tocarem em temas que são cadentes e delicados para nossa vida em sociedade. E esse, a meu ver, é o grande potencial religioso dessas histórias. Não é a alegoria, a metáfora ou o uso de elementos do imaginário religioso como fundo narrativo. O que vai fazer uma história mais ou menos religiosa é a intensidade com qual ela expressa a nossa condição humana na linha tênue entre o ideal e o real, entre o viver e o morrer. O potencial do novo filme dos X-Men, em termos de religião, não está tanto na metáfora dos quadro cavaleiros do Apocalipse e seu entorno narrativo; nesse aspecto, é equivalente a um filme que fala sobre Zeus, Odin, e todas as histórias religiosas fantásticas que hoje rotulamos como mitologias. O potencial do filme reside naquilo que ele pode evocar por meio de uma catharsis, em cada um de nós: nossos medos, nossas esperanças, nossas orações, nossos desejos, nosso cotidiano embaralhadamente religioso e não religioso, trazidos à flor da pele. Por isso, em X-Men, discutir tolerância, alteridade, preconceito, diversidade e aceitabilidade é extremamente religioso. No fundo, X-Men é uma grande metáfora de como se comportam as religiões hoje em dia. Os X-Men nos levam a pensar sobre como a violência religiosa se expressa quando não se tolera a diferença e a perceber o quanto essa postura religiosa fundamentalista é danosa à esfera pública. Religião também é contestação. E os X-Men provocam (ou podem provocar) essa reflexão.

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