Na história tradicional, é recorrente que se busque distância temporal entre o autor e o período retratado em uma obra. Mas, se o afastamento costuma possibilitar uma percepção mais completa e aprofundada, essa postura pode acabar por ignorar questões importantes do contemporâneo. Guiados por um senso de urgência, alguns pensadores têm se dedicado a registrar e analisar os fatos no calor do momento, para ampliar o debate em torno de assuntos enquanto eles ainda ocupam lugar de destaque nos noticiários. A atual crise política no Brasil, por exemplo, é mote de dois lançamentos neste mês, um nacional e outro internacional.
A resistência ao golpe de 2016 (Editora Praxis, R$ 30) aborda o contexto que levou ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República. ;A ideia é ser um livro de posicionamento;, explica a professora de direito internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carol Proner, uma das organizadoras da antologia, que tem participação de 100 autores, entre juristas, sociólogos, historiadores etc. A maior parte dos textos reunidos no livro foi escrita no fim de 2015 e no início do mês de maio de 2016.
[SAIBAMAIS]
A expectativa da acadêmica é, a partir da obra, fomentar o debate sobre o atual cenário do país e questionar os fatos que desencadearam a instauração do processo de impeachment da presidente e seu afastamento temporário do cargo. ;Queremos contrabalancear as informações hegemônicas que estão saindo sobre esse momento e afastar esse pensamento de configuração de Dilma como uma criminosa;, afirma Proner. De acordo com a organizadora, a primeira tiragem do livro é de quatro mil cópias, mas uma nova leva de exemplares já foi encomendada.
A atual crise política também motivou a publicação de Brasil: golpe de 2016, lançado pela editora espanhola Ediciones Ambulantes, especializada em literatura brasileira. O e-book, disponibilizado gratuitamente, reúne textos, traduzidos para o espanhol, de personalidades e pensadores como Eric Nepomuceno, Ana Alkimim, Chico Buarque, Carla Guimarães, Wagner Moura, Leonardo Boff e outros.
Embora possam ser classificadas em gêneros variados, por abordarem campos como sociologia, política ou história, por exemplo, algumas dessas obras podem ser enquadradas dentro de uma categoria recente de publicações chamada instant books. O termo, que pode ser traduzido literalmente como ;livros do momento;, define um filão ainda pouco explorado no país, mas que parece impulsionado pelas recentes crises políticas.
Habitualmente, são livros não tão extensos, produzidos em um curto espaço de tempo, como #VemPraRua (Companhia das Letras, R$ 4,99), do jornalista Piero Locatelli. Lançada exclusivamente em e-book, a investigação registra as revoltas de junho de 2013 em São Paulo, desencadeadas inicialmente por causa do aumento nas tarifas de ônibus. Para o autor, obras asssim ;vão dar uma boa ideia para quem, no futuro, for tentar entender o que aconteceu no Brasil nos últimos anos;. Ele destaca que mais do que tentar explicar, a sua proposta foi sistematizar os fatos em andamento naquele período.
;Tudo que aconteceu em 2013, a exemplo do que está acontecendo agora, é uma narrativa fragmentada. As notícias surgem em diversos locais, em redes sociais;, salienta. ;Não que seja possível dar conta de tudo que está acontecendo em um determinado momento;, admite o jornalista, explicando que o trabalho envolveu não só a reportagem tradicional como uma espécie de ;curadoria; para identificar o pensamento da época.
Também no ano de 2013, um grupo de autores publicou Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos, obra com temática inspirada pelas manifestações que tomaram conta do país. A publicação foi disponibilizada gratuitamente nos links diariode.pe/b24g e diariode.pe/b41b.
Mais recentemente, os ilustradores Rodrigo Rosa e Cau Gomez, com o roteiro e desenhos de Wander Antunes, publicaram a webcomic É noite outra vez, narrando sua visão sobre as manifestações de 2016 e o processo de impeachment.
Valor histórico
;Publicações assim são tentativas de dar sentido ao caos em que estamos inseridos;, opina o doutor em história da UFRPE Lucas Victor Silva, que considera os instant books como importantes documentos históricos, mesmo que não tenham necessariamente peso acadêmico.
;Os historiadores não têm o privilégio de dizer o que aconteceu;, afirma. Para ele, autores, inclusive amadores, independente da sua formação, também contribuem com o registro dos tempos atuais.
De acordo com Silva, que também é pesquisador da história do tempo presente, ;ainda há por parte de historiadores a regra implícita de que é necessário um afastamento temporal para se analisar determinado período;. Na opinião do acadêmico, a tarefa do historiador é organizar múltiplos pontos de vistas: ;O distanciamento não precisa se dar temporalmente, mas ser crítico, de reflexão;.
;É mais fácil explicar acontecimentos do passado porque seus efeitos já passaram;, acredita. Para o historiador, os instant books surgem como tentativa de tentar explicar questões atuais.;Ainda não conseguimos entender o que aconteceu em 2013 ou as recentes manifestações contrárias ao governo. Esses acontecimentos continuam desafiando a sociedade;, diz.
Brasil: Golpe de 2016
Publicada em espanhol pela Ediciones Ambulantes, reúne textos de autores como Chico Buarque, Carla Guimarães e Leonardo Boff, sobre a atual crise política brasileira. No formato e-book, o livro de 37 páginas está disponível para download gratuito em edicionesambulantes.com.
A resistência ao golpe de 2016
Com 450 páginas e colaboração de dezenas de autores, entre juristas, sociólogos e outros estudiosos, a obra questiona o processo de impeachment da presidente da República. Publicado pela Editora Praxis, o livro será publicado em breve e custará R$ 30.
#VemPraRua
Disponível no formato digital (Cia das Letras, R$ 4,99), traz um ensaio do jornalista Piero Locatelli narrando acontecimentos que levaram às manifestações de junho de 2013 e o surgimento do Movimento Passe Livre, que conduziu protestos contra o aumento da tarifa de ônibus.
#Sobreontem
As reflexões sobre momentos turbulentos da vida social também ganham corpo em outros formatos. Os quadrinhos foram a plataforma escolhida para uma série de artistas brasileiros discutirem os protestos de junho de 2013, no fanzine #Sobreontem, organizado pelos irmãos Gabriel Bá e Fábio Moon. Publicada no mesmo mês, a revista contou com textos e HQs de outros 17 quadrinistas, incluindo nomes como Laerte, Rafael Grampá e João Montanaro.