Ricardo Daehn
postado em 01/06/2016 07:30
Medos compartilhados por muitos, talhados sob a ótica realista e a objetividade do entretenimento, resultaram numa virada de página para o terror, quando o diretor George A. Romero tomou de assalto um gênero relegado pela indústria do cinema. Ledo engano de quem desprezasse a capacidade do, à época, jovem diretor de A noite dos mortos-vivos, em fins dos anos de 1960, quando ele, a partir da aplicação de meros US$ 100 mil, deu vazão ao, hoje, título clássico.
Escalado para as 18h30, na programação de hoje, na mostra do CCBB George A. Romero ; A crônica social dos mortos-vivos, A noite dos mortos-vivos é emblemático e abriu infinitos caminhos para o acesso à obra do cineasta, dono de personagem no game Call of duty e fomentador de um estilo e de cenários reprocessados, à décima potência, em sucessos como a atual série The walking dead.
;Zumbis se transformaram em coqueluche, pelo fato de estarem mais próximos da gente, como possibilidade, num universo diferenciado de vampiros, lobisomens e demais monstros. A superbactéria é uma possibilidade. Em algum tempo, pelo uso indiscriminado de remédios, deixarão de agir;, observa o curador da mostra, Mário Abbade.
Até emplacar a mostra em editais, Abbade teve que enfrentar certo pouco caso com o gênero levantado por Romero: o terror. Ainda assim, na mostra cabe drama (There;s always vanilla), doses de ficção científica, em O exército do extermínio (fita de 1973, refilmada como A epidemia, em 2010).
Conceituado na cena teatral em Pittsburg e dono de veia de comunicação imediata, por se aplicar em comerciais, Romero ; celebrado até 20 de junho, no CCBB ; trouxe às telas filmes como Hungry wives (1972), em que uma mulher, com abusos domésticos, recorre à bruxaria e Zombie ; O despertar dos mortos (1978), em torno de pessoas acuadas por ataques, dentro de um shopping. Em Martin (1977), por exemplo, o diretor revela as peripécias de jovem que partilha com o público a desgraça de ser diferente, se vendo vampiro.
Transformação
Nisso está a forma como o diretor reabastece o imaginário do espectador, gosto partilhado por pessoas como Quentin Tarantino e Brian de Palma. ;A comprovada transformação da sociedade é regular, na existência humana. O mundo já foi de civilizações como maias e assim por diante. Por que não lidar com a ideia de uma geração engolir a outra, como fazem zumbis?;, provoca o curador Mário Abbade.
Comprovada semente para o despontar de games como Resident evil, Romero, na mostra do CCBB (com ingressos a R$ 10, meia), será revisado em documentários e apresentações de refilmagens geradas pela obra dele, calcada em críticas à segregação e ao consumismo. Reconhecido, chegou a contar até com atores candidatos ao Oscar (por outras fitas), em suas produções, entre os quais Ed Harris, Timothy Hutton, Dennis Hooper e Harvey Keitel.
George A. Romero ; A crônica social dos mortos-vivos
CCBB Brasília (SCES, Tr. 2) De hoje a 20 de junho. Hoje, às 17h, Birth of the living dead (2013); às 18h30, A noite dos mortos-vivos (1968) e às 20h30, Instinto fatal (1988). Ingressos, R$ 20 e R$ 10 (meia).
Três perguntas // Mário Abbade, curador
Como Romero lida com o reciclar de suas obras?
Romero vê, acha bacana, ri, mas acha que não tem nada a ver com o cinema dele. Nos filmes dele, os protagonistas são os zumbis. A noite dos mortos-vivos é uma declaração de ativismo político contra a guerra do Vietnã, um artista mobilizado contra a militarização. Num segundo filme, estabeleceu uma crítica forte contra a sociedade de consumo. Noutro filme, ele demonstra a fragilidade dos moradores que pensam estar seguros, num condomínio livre de violência e perigo.
Romero está popular, pela expansão da temática dos zumbis?
Ele segue na contramão. É um cinema de nicho que não se tornou popularizado. Terror sempre sofreu tipo de preconceito. Diz para alguém: ;Vamos ver A maldição da cobra venenosa?;. Ninguém vai. Os humanos lidam bem com o humor. Poderiam se abrir para lidarem com angústias e medos. O The walking dead traz essa metáfora interna, voltada para nicho e para os nerds: tem dilema humano, terror psicológico e mostra a sociedade indo de encontro a como deveria agir.
Quais as exigências de se lidar com uma mostra dessa magnitude?
Houve dificuldades, dribladas ao longo de seis anos. Claro que há subjetividade, mas Coppola, Godard e Almodóvar têm mostras sistemáticas e recorrentes. Haveria necessidade de se encorpar um olhar artístico em cima de uma mostra de Romero, até pelo público específico em questão. Lidar com terror, pela exclusão, deveria receber um carinho ainda muito maior. Fazer circular o cinema de John Carpenter e de Dario Argento, que encampei como curador, foi quase impossível. Até o Zé do Caixão teve que estar consagrado, lá fora, para obter atenção. Terror não requer um preenchimento de meros horários. Intervalos menores entre as sessões são bem-vindos: vai contra o operacional de uma mostra. Com a remasterização, os filmes migraram para o sistema DCP (digital). Emprestar películas, agora tratadas como tesouros nacionais, ficou muito difícil. O orçamento seria astronômico para trazer películas, suporte de projetor oferecido na estrutura da nossa mostra. Além disso, há público específico, interessado em maratonas e afins. Não é uma lógica corrente e única.