Quando as duas explosões no reator da usina nuclear de Chernóbil jogaram no ar uma nuvem de compostos radiativos, na madrugada de 26 de abril de 1986, os soviéticos começaram a descobrir que os ;átomos da paz; eram capazes de instaurar uma guerra invisível. Ninguém estava preparado para lidar com o fato de que as florestas permaneciam intactas, as casas em pé e o sol brilhando enquanto o mundo se esvaziava. A quantidade de radiação chegou a ser 500 vezes maior que o mínimo suportado pelo corpo humano. No entanto, a desorganização atômica provocada pela explosão era invisível. Os soviéticos haviam sido preparados, durante décadas, para enfrentar um inimigo armado com tanques e bombas. E podiam até ser atômicas. Sabiam que precisavam correr para abrigos, se jogar contra o solo podia ajudar a evitar a onda de calor da explosão nuclear, seria necessário revidar e, para isso, precisavam (e tinham) coragem. Mas ninguém sabia o que fazer diante de uma ameaça silenciosa proporcionalmente mais letal que um conflito bélico. E foi assim que Tchernóbil, a maior catástrofe nuclear da Europa no século 20, se tornou também o maior mistério a ser enfrentado pelo povo soviético.
Sobre este mistério, a jornalista Svetlana Aleksiévitch preferiu se calar. Foi aos sobreviventes que ela deu ouvidos em Vozes de Tchernóbil ; A história oral do desastre nuclear. Svetlana nunca havia recebido atenção das editoras brasileiras até o ano passado, quando venceu o Prêmio Nobel de Literatura. Uma pena. Jornalista nascida na Ucrânia em 1948, uma das vozes mais importantes na narrativa sem filtros sobre a natureza do homem soviético, apenas agora ela chega às prateleiras das livrarias brasileiras. No fim do mês, a Companhia das Letras lança ainda A guerra não tem rosto de mulher, relato de mulheres que lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra.
Vozes de Tchernóbil projetou o nome de Svetlana porque é, provavelmente, o que mais ganha a identificação do público internacional. O acidente com a central nuclear teve repercussão no mundo inteiro. A nuvem radioativa viajou pela Europa e chegou à África, à Ásia e aos Estados Unidos. Dos 2,1 milhões atingidos pela tragédia, 700 mil eram crianças e quem cresceu nas décadas de 1980 e 1990 lembra bem das cabecinhas carecas dos meninos e meninas de Chernóbil estampadas em jornais e programas de televisão. O número de doenças oncológicas na região passou de 82 para 6 mil a cada 100 mil habitantes.
Custo humano
No livro, os relatos aprofundam uma história que o Ocidente nunca chegou a conhecer em detalhes e expõe o custo humano associado ao perigo nuclear, seja ele o de uma bomba ou o da produção de energia. A Guerra Fria vivia seus últimos dias e uma abertura para suas fragilidades não era exatamente um desejo do povo soviético. É, aliás, a condição soviética um dos pontos mais marcantes dos relatos. Quando o reator explodiu, a crença na tecnologia e na superioridade do país era tanta que muitos tiveram dificuldade em aceitar o fato como uma tragédia. O governo foi negligente ; Mikhail Gorbachev, que em seguida tocaria a Perestroika, levou nove dias para se pronunciar sobre ocorrido ;, equipamentos de segurança não foram distribuídos para não semear o pânico e as medidas profiláticas para evitar o contágio com a radiação foram ignoradas pelo mesmo motivo. As evacuações das áreas contaminadas levaram 36 horas para ter início, a população não entendia o que se passava e muitos homens convocados pela cúpula militar foram enviados à região sem saber para onde estavam indo. Quem trabalhou ou viveu num raio de 30km da usina atômica ficou conhecido como ;homem de Chernóbil; e, caso tenha sobrevivido, se transformou num estigma ambulante. Colhidos durante a década que se seguiu ao acidente e publicados em 1997, os relatos insistem em uma pergunta sem resposta: quem foi o culpado.?
No depoimento das mulheres ; uma característica da literatura de Svetlana ; e das crianças, estão os momentos mais tocantes do livro. No discurso feminino, o futuro é um abismo sem luz. Um desastre atômico imprime o medo e o selo da morte no que há de mais significativo para a vida: o nascimento. ;O tempo mordeu o próprio rabo, o início e o fim se tocaram;, reflete Svetlana. Ter filhos, para as gerações pós-Chernóbil, é uma temeridade. Além disso, as crianças pararam de sorrir. Começaram a adoecer, foram proibidas de brincar na grama ou com animais por causa da radiação e passaram a imaginar e especular como morreriam. Também não entendiam a necessidade de matar gatos e cachorros quando caçadores foram convocados para eliminar os bichos. Os animais domésticos viraram pequenas bombas a serem desativadas.
Temas trágicos
Chernóbil faz parte da história da própria Svetlana e seu relato permeia o livro. Nascida em maio de 1948, filha de um bielorrusso e uma ucraniana, ela acompanhou algumas guerras, frutos dos enfrentamentos entre o bloco comunista e capitalista. Esteve no Afeganistão em 1989 para voltar para casa desiludida com o ideal comunista no qual o pai a criara e que aprendera a venerar. No fim do livro, uma reprodução do discurso realizado na academia sueca durante a cerimônia de outorga do Nobel revela trechos do diário da escritora. Vozes de Tchernóbil, assim como A guerra não tem rosto de mulher, são livros incomuns. Não há ali nenhum exercício literário. Como a própria autora explica, ;o conteúdo rompe a forma;. O que a interessa é o que ela chama de pequeno grande homem, aquele que conta a própria história e a transforma em grande história. ;Frequentemente, me perguntam por que escrevo sempre sobre temas trágicos. Porque é assim que vivemos. Mesmo que hoje vivamos em países diferentes, o homem vermelho está em toda parte;, escreve.
Vozes de Tchernóbil ; A história oral do desastre nuclear
De Svetlana Aleksiévitch. Tradução: Sônia Branco. Companhia das Letras, 384 páginas.