Berlim é uma cidade particular quando se trata de arte. Uma combinação de fatores históricos e culturais fizeram da capital alemã uma espécie de ilha e com essa ideia em mente, o curador Alfons Hug montou Zeitgeist ; Arte da nova Berlim, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Nas galerias e nos jardins do espaço, um total de 29 artistas apresentam o que há de mais contemporâneo na produção berlinense da primeira década do século 21 numa tentativa de mostrar como a cultura da cidade é produto de sua história recente.
A Guerra Fria da segunda metade do século 20 e a existência concreta de um muro para separar uma mesma sociedade em dois regimes ajudaram a formatar o pensamento artístico da cidade. Segundo Hug, a região nunca foi um centro do mercado de arte europeia e, de certa forma, isso libertou os artistas para mergulharem na criação sem as amarras do comércio de arte. Além disso, a queda do muro em 1989 e o fim da Guerra Fria mudaram a configuração física da capital alemã. Com a reunificação, algumas fábricas foram fechadas e certos distritos industriais ficaram sem uso, o que possibilitou ampliar as áreas tanto de residências quanto de espaços culturais. ;Berlim é o novo centro das artes na Europa e um dos motivos é que a cidade ainda é acessível. Em Londres e Paris, não se consegue mais ateliê como artista, o aluguel é muito caro. Em Berlim, sobretudo do lado Oriental, a desocupação das indústrias fez com que muitas fábricas e galpões estivessem à disposição e isso facilitou a ocupação do espaço pelos artistas;, explica o curador.
Os espaços desocupados tornaram a cidade atraente para os artistas, assim como a ausência do que Hug chama de corte cultural, um senso comum que dita a tendência e inclui ou exclui determinada produção. ;Essa corte estabelece um monte de tabus e isso não existe em Berlim: é uma cidade que não tem muita hierarquia, nem na política nem na economia, e muito menos na cultura. Tudo isso ajudou em um certo laissez-faire;, diz o curador. Os artistas se sentiram livres para experimentar, ousar, investir em ideias sem se preocupar com o mercado e explorar materiais precários na construção de instalações e obras efêmeras, difíceis de serem comercializadas.
Essa liberdade também encontrou reflexo na vida noturna, por isso Hug quis estabelecer uma conexão explícita entre a cultura da música eletrônica e a produção artística. Zeitgeist faz, portanto, um diálogo entre a arte contemporânea, a música e a cultura de clubes e boates da noite berlinense. Para costurar tudo, Alfons Hug pontuou a exposição com seis noções que ajudam a compreender a Berlim contemporânea. Além de pinturas, instalações, vídeos, fotografias e esculturas, a exposição conta também com uma sala intitulada Clube Berlim, na qual o público poderá ouvir músicas de sete DJs emergentes da cidade. Uma programação com três festas nas quais alguns artistas realizarão performances também está prevista, além de uma palestra, no próximo dia 1; de agosto, com o curador Alfons Hug e com o artista Sven Marquardt.
Clique e assista ao vídeo da performance Standart time
Tempo
Diferentes noções de tempo a conviverem em um mesmo momento histórico já foi uma realidade em Berlim. Na época do muro, a discrepância entre os lados Ocidental e Oriental podia confundir um viajante: a Berlim comunista parecia estacionada em décadas mais longínquas que sua vizinha capitalista. Refletir sobre essa noção tempo é uma das propostas do curador, que escolheu as imagens de Michael Wesely, fotografias resultantes de longas exposições de até dez anos, e a instalação-performance Standart time, de Mark Formanek, para representá-la. Na obra, o artista desconstrói um relógio na tentativa de ajustá-lo ao tempo certo. ;Essa talvez seja uma das obras mais emblemáticas que estará em um espaço aberto, meio instalação meio performance;, avisa Hug.
Ruína
Destruída e reconstruída diversas vezes por conta de guerras que se alastraram ao longo dos séculos, a cidade já viu suas ruínas passarem por vários estágios e foi essa condição que o curador quis evidenciar em algumas obras. Hug fala em beleza estética da ruína e cita artistas como Frank Thiel, que fotografou construções em Berlim mas cujas imagens também sugerem um processo de demolição, e Tobias Zielony, autor de uma fotomontagem com 7 mil fotografias de subúrbios de Nápoles (Itália). ;Gostei muito porque tem a ver com as periferias tanto de Paris quanto de Berlim e da Itália;, avisa o curador. ;É uma metáfora para subúrbios de Berlim.;
Construção e demolição
Essa ideia se conecta com as ruínas no sentido de estabelecer um paralelo entre a ânsia de deixar para trás um passado e sobre ele erguer um futuro e o desejo de abandonar uma história. ;Aqui, temos várias obras que representam a eterna construção e demolição de Berlim;, avisa o curador. Uma instalação-escultura de Julius von Bismarck reúne 12 betoneiras dispostas em círculo e girando em um barulho ensurdecedor, alusão óbvia às obras inevitáveis em qualquer metrópole. Aqui entra também uma obra de Marcellvs L, brasileiro radicado em Berlim há duas décadas e autor de instalação que dialoga com o museu do Holocausto.
Vazio e provisório
O destaque é a pintura. De forma figurativa ou abstrata, a tela comporta, ao mesmo tempo, as noções de ocupação e vazio. É a ocupação dos espaços que toma a dianteira e se mostra fundamental na construção de uma cultura para a capital alemã. ;A pintura alemã é uma das melhores na Europa, tanto a figurativa quanto a abstrata;, garante Alfons Hug. O tropicalismo de Franz Ackermann, nome comum em várias bienais de Veneza e cujas obras fazem parte do acervo do Museum of Modern Art de Nova York (MoMA), convive com a geometria colorida e explosiva de Thomas Scheibitz e a figuração dramática de Norbert Bisky.
Hedonismo cruel
O hedonismo alemão, Hug ensina, não é alegre como o brasileiro e tem algo de sério e pesado. A história do país tem um peso nessa vivência, por isso o curador gosta do adjetivo ;cruel; para qualificar o estilo alemão. Com essa ideia, Hug quis mostrar como a cultura da vida noturna de Berlim reflete na produção artística. A fotógrafa Friederike von Rauch registrou a antiga usina que virou sede da boate Berghain, mistura de galeria e templo da música eletrônica, e o fotógrafo Sven Marquardt, recepcionista da casa noturna, captou a vida e o trabalho dentro do clube. Acompanha as imagens uma instalação sonora de Marcel Dettmann, com um extrato da música eletrônica que marca a cena de Berlim. Para completar essa ideia da cultura eletrônica, o curador convidou Marc Brandenburg, que faz performances com tatuagens aplicadas no público.
Novos mapas
O experimentalismo e a ousadia entram nessa concepção de novas cartografias ao mesmo tempo que o diálogo com o resto da Europa e do mundo. O vídeo de Christian Jankowski é um bom termômetro dessa liberdade: dentro de um supermercado, o artista encena uma caça e um rapto nos quais as vítimas são as mercadorias.
DUAS PERGUNTAS PARA ALFONS HUG
Como a história recente influenciou a cena cultural de Berlim?
Ninguém queria investir na cidade durante a guerra fria, muitos espaços ficaram meio arruinados e os artistas então puderam, depois da unificação, ocupar esses espaços. A primeira imagem de Berlim, no final dos anos 1990, era de vários espaços desocupados no centro da cidade. É uma coisa inédita para uma capital da Europa. Vários fatores tornaram a cidade atraente para os artistas. Obviamente, o que ajuda também é a ausência de uma corte cultural e uma liberdade também na vida noturna. Uma parte da exposição tem a ver com os clubes de Berlim. Acredito que nenhum outro lugar tem um vínculo tão estreito entre artes plásticas e clubes. Até porque muitos artistas ou fizeram exposições de alto nível nos clubes ou trabalhavam nos clubes. A gente está mostrando como o clube entra na vida artística. Tudo isso tem a ver com a liberdade, com o laissez-faire, porque o clube nunca fecha, você pode começar a festa na sexta à noite e continuar até segunda de manhã e isso dificilmente seria possível em outro lugar. Uma série de fatores ajudou a criar um clima favorável ao surgimento da arte, e não só das artes plásticas. Também estamos falando da capital do teatro, da capital da dança, da capital da literatura. Cada vez mais do cinema também e da música clássica, com três casas de ópera.
Como a efervescência de Belrim pós-queda do muro afetou a arte produzida na cidade?
Acho que influenciou não só a arte de Berlim mas de toda a Europa e do mundo. Berlim nunca foi uma cidade do mercado de arte. Antes da guerra, pode até ser, mas agora, certamente não. O artista de Berlim, em primeiro lugar, consegue viver de forma econômica e, no início, pelo menos, ele não estava muito preocupado em vender, ele fazia por fazer, e fazia o que ele queria, não o que o galerista queria. Então a preocupação com a mercadoria, com o valor comercial, é bem menor do que em outras cidades. Isso fez com que os artistas pudessem experimentar mais. É uma arte mais crua, talvez menos polida do que outras artes por aí.
Programação
Palestra com o curador Alfons Hug e o artista Sven Marquardt: 1/08, às 20h no Teatro 1. Retirada de senhas na bilheteria a partir das 19h.
Festa 1: 19/08, às 21h, com DJ, VJ e performance Standard Time, do artista Mark Formanek, e performance Temporary Tattoo, do artista Marc Branderburg
Festa 2: 16/09, às 21h, com DJ, VJ, Maurício Ianês, com a performance Nãonão, e a coletiva CÃO, apresentação com música eletrônica e Maikon K com a performance DNA de DAN
Festa 3: 12/10, às 21h, com DJ, VJ, performance Standard Time, além de estrutura de foodtrucks com comidas e bebidas alemãs.
Zeitgeist ; arte da nova Berlim
Coletiva com 29 artistas contemporâneos da cena berlinense. Curadoria: Alfons Hug. Visitação até 12 de outubro, de quarta a segunda, das 9h às 21h, no Centro Cultural Branco do Brasil (CCBB - SCES, Trecho 02, lote 22).
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