postado em 31/07/2016 07:30
São Paulo ; Talvez elas não soubessem que seriam referências tão contundentes do panorama político e social atual. Mas, inegavelmente, a cartunista Laerte e a cineasta Anna Muylaert se tornaram nomes obrigatórios quando o debate gira em torno de feminismo, gênero e preconceito, sem falar em política. Antes mesmo de assumir uma identidade feminina, a paulista Laerte Coutinho provocava os leitores por meio de charges políticas e personagens marcantes, com passagens expressivas pelos principais veículos do país, a exemplo de O Pasquim. Depois da resignação social de gênero, tornou-se militante de causas em prol da transgeneridade e acabou aclamada símbolo da diversidade nacional. A conterrânea Anna Muylaert ganhou visibilidade a partir de Durval discos (2002), quando foi apontada por crítica e público como uma revelação do cinema nacional. Embora estude e pesquise sobre temas relacionados ao machismo e à intolerância desde o começo da carreira, foi graças ao premiado Que horas ela volta? (2015) que ela passou a ser vista como uma voz proeminente da área. Sem medo de se expor publicamente, ela confirma a vocação no recém-lançado Mãe só há uma, no qual inflama a discussão em torno de gênero. Durante o 11; Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, a mais importante mostra cinematográfica da América Latina, elas receberam o Correio para entrevistas exclusivas. E não mediram palavras.
Entrevista / Laerte
Você sempre teve o objetivo de ter seu trabalho como referência de resistência política, de ser uma ferramenta contra a intolerância?
Eu penso no meu trabalho como um meio de expressão. Como consequência, há de traduzir, de alguma forma, minhas preocupações enquanto pessoa, enquanto cidadã, enquanto alguém que frequenta este país. De alguma maneira, acabo refletindo isso de modo direto, quando faço charges políticas, por exemplo, e de modo indireto, quando lido com ficção. Mas é uma avaliação que cabe mais aos outros.
Você se assume enquanto figura feminista?
Eu gosto do feminismo. Tenho profunda simpatia pelo feminismo e me considero como parte de apoio ao movimento. Eu me considero feminista. O feminismo não é um clube fechado, não é um partido. É uma ideia e eu partilho dessa ideia.
O fato de ser uma figura pública, reconhecida e respeitada, facilitou a sua transformação? Foi mais fácil assumir essa mudança de gênero?
Sim. O fato de eu ser uma pessoa conhecida e ter a história que eu já tinha facilitou muito. Não só a minha história, mas o contexto social, profissional, familiar que eu estava inserida. Foi decisivo. O que ressalta a importância do apoio da família, da comunidade, das instituições que nos cercam. O desacordo que a pessoa descobre não é consigo mesma, mas com a sociedade. Mas o primeiro ponto de aceitação precisa ser pessoal sim. Entender, aceitar e evoluir.
Você diria que esse processo, no seu caso, aconteceu de maneira tardia?
Conscientemente, eu reprimi minha orientação sexual. Mas eu não sabia da transgeneridade. Isso foi meio que um bônus (risos). É verdade! Apareceu depois, como consequência dessa tranquilidade que adquiri ao me aceitar enquanto homossexual, enquanto portadora de um desejo por homens, ao compreender que não havia nada de extraordinário nisso. Mas não tinha, lá trás, essa clareza de que eu queria me expressar dessa maneira. Foi realmente um bônus.
E como se posiciona nesse embate do ;lugar de fala;? Só a trans pode falar da trans? Só a feminista fala da feminista? Só o negro pode falar do negro?
A pergunta já demonstra alguma crítica ao termo. Lugar de fala, protagonismo... São conceitos importantes. Muitas vezes, servem sim a um estreitamento do debate. À medida que você nega acesso de voz a outras falas, você não está só iluminando essa ou aquela fala, corre-se o risco de se empobrecer a conversa. Então, é preciso ter uma compreensão correta desses termos. Mas são muito importantes na medida que valorizam e permitem que populações negras, gays, trans, feministas falem de forma inédita, como nunca aconteceu. Um bom senso sempre cai bem.
A arte, o cinema, o desenho, o teatro... são as melhores ferramentes para se discutir gênero, preconceito, racismo?
Não sei se são as melhores ferramentas. Eu uso aquelas que estão ao meu alcance. Cada uma dessas linguagens tem sua especificidade e seu modo de lidar com esses discursos. Não sei se existe uma melhor maneira de tratar essas questões. Às vezes, é simplesmente debatendo, e não necessariamente produzindo obras. Mas, não tenho dúvida de que o cinema, o teatro, os livros possam colaborar para a discussão.
Em termos mais práticos, quais medidas poderiam ser tomadas de forma a ampliar esse debate, de maneira a educar e informar a sociedade?
Por meio da aprovação de uma lei de expressão de gênero, o PL. 5002/2013 (de autoria dos deputados Jean Wyllys e Erika Kokay), chamada Lei João Nery, e também através da elaboração de recursos legais para nos protegermos da homotransfobia. A equiparação da homotransfobia aos crimes de racismo é uma reivindicação muito importante. Não tem sido fácil avançar nesse território, já que ele vem sendo alvo de muita agressão do conservadorismo. O conservadorismo, o fundamentalismo religioso, estão tentando limar esses passos. Precisamos construir um arcabouço jurídico para que a comunidade LGBT tenha uma vida menos sofrida, menos sujeita à violência.
A atual conjuntura política exprime avanços ou retrocessos?
A gente não foi jogado nessa conjuntura. Não caímos de paraquedas. Ela reflete muito do que a gente fez ou deixou de fazer. Estamos tentando compreender nossas vidas a partir do ponto de vista político, o que é um trabalho longo e lento. Nas últimas eleições e nas próximas, por exemplo, tivemos as questões LGBT pautando debates, de maneira inédita, o que me parece um avanço. Agora, se você está falando do golpe, aí é outra história... (risos)
Entrevista / Anna Muylaert
Essa preocupação do empoderamento feminino, do fim do machismo, da inclusão, pauta seu trabalho desde o início, lá com Durval discos?
Eu não tinha esse objetivo. Na verdade, meu primeiro projeto cinematográfico, antes mesmo de Durval discos, era o Que horas ela volta?, que se chamava ;A porta da cozinha;. Ali sim, já tinha algumas colunas fortes. Desde a crítica ao separatismo social à desvalorização da mãe e da mulher. Eu não achei que me tornaria referência de resistência, mas queria levantar questões que estavam jogadas atrás do sofá.
Hoje, podemos dizer que todos os seus novos projetos vão necessariamente passar por esse lugar?
Acho que sim. Eu estou organizando um núcleo de criação, com vários projetos, e todos são contra alguma forma de autoritarismo. Tem machismo, tem racismo, tem transfobia.
Seu nome acabou muito atrelado ao movimento contra o machismo...
O machismo é uma coisa muito tinhosa. Só o racismo, talvez, seja pior nesse sentido. A homofobia, por exemplo, é explícita. O cara berra: ;Viado!”. O machismo está introjetado em nossas células, tanto dos homens, quanto das mulheres. Temos o cara que bate na mulher, que escancara o machismo. Mas a diminuição da mulher no cotidiano, nas palavras, é outra história. Sabe o cara que vai lavar louça e diz: ;Olha como eu estou ajudando;? Mas, pera aí! Ele está ;ajudando;? Ele mora com a pessoa, ele faz parte. E nós, mulheres, fomos criadas para sermos tímidas, submissas, então acontece uma grosseria e nem percebemos. Conversar sobre isso talvez seja um bom começo.
Como o Estado poderia intervir?
Por exemplo, a Ancine (Agência Nacional de Cinema) determinou que haja uma paridade de gênero nas comissões julgadoras dos projetos. Isso é ótimo, porque, de fato, vai provocar um novo olhar sobre essas escolhas. O Oscar tem preocupação parecida, com essa inclusão de mulheres, negros, estrangeiros como membros da Academia. O Estado precisa pensar na diversidade. O quadro de ministérios atuais não tem uma mulher. Como assim? Por quê? Ainda vivemos a premissa social de que o poder é ocupado por homens. Por que preterir a mulher? As mulheres estão sustentando a casa!
Quais cuidados devem ser considerados para evitar que o próprio discurso de inclusão não se torne intolerante?
Meu filho de 16 anos me disse rindo outro dia: ;Agora, você está se tornando ;femista;;. Que seria justamente a mulher intolerante. Sem dúvida, a mulher precisa ter o cuidado de não ser tratada como segunda classe. Mas isso é uma questão enraizada nos homens, mas também nas mulheres. É preciso esclarecer. É preciso nos esclarecermos. Agora, de maneira geral, não acho que a intolerância seja um caminho producente. Eu não gosto de agressividade. Eu gosto de consciência.
Você assume posturas políticas escancaradas. Acredita que seja uma escolha pessoal ou um dever enquanto figura pública?
Ainda estou tentando entender. Eu tomei algumas posturas em determinados casos. Agora, quando tive a oportunidade de expressar minha desaprovação com o impeachment da Dilma, eu achei que era uma responsabilidade minha. Aliás, encontrei (o diretor de teatro) Zé Celso em um almoço, e perguntei: ;Zé, você achou que viveria outro golpe?;. Ele me disse: ;A parte boa é que está todo mundo nas ruas, debatendo, interessando-se pela vida política do país;. É um momento de resistência geral.
Seu novo filme traz essa ideia de ;sermos o que quisermos ser;. Seria uma utopia ou uma realidade?
Os dois! Claro que ainda se trata de uma utopia, mas, principalmente na geração jovem, aproxima-se da realidade. Outro dia, vi um cara de barba usando vestido. Estamos vivendo essa construção única de gêneros. A internet permite essa pluralidade de vozes. As pessoas buscam suas próprias referências, e não a dos outros. O filme tenta jogar todas essas caixinhas foras. Mas, sim, uma utopia e uma realidade. O crescimento da diversidade é paralelo ao crescimento da resistência conservadora. Esbarramos em avanços e em retrocessos. Mas tenho certeza que o caminho final é a liberdade. Mesmo que demore 1 mil anos. Pensa bem! Mil anos atrás, onde estávamos?
*O repórter viajou a convite do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo