Tudo começou pela paixão. Em 1985, o jornalista e professor de filosofia Adauto Novaes organizou um ciclo para discutir as paixões, o olhar e o desejo. Era um momento em que o país saia de uma ditadura militar, dividido por maniqueísmos e esses temas levantavam a suspeita de serem movimentos ilusórios e irracionais. No entanto, para a surpresa geral, lotaram auditórios, provocaram filas e se transformaram em sucessos editoriais quando ganharam a forma de livros: ;O homem é todo inteiro paixão;, comenta Adauto Novaes. ;Existe uma relação muito forte entre paixão e conhecimento. Ela não é pensamento, mas deflagra o pensamento;.
Depois das paixões, a década de 1980 trouxe as transformações vertiginosas da tecnociência e Adauto concebeu um novo ciclo, batizado de Mutações. Ele encara o desafio de pensar um mundo pós-humano, dominado pelo computador, pelo smartfone e por outras máquinas fascinantes e terríveis. Os cursos livres concebidos por Adauto chegam à marca de 30 anos com um precioso legado. Existe o que comemorar. São 31 ciclos, com a participação dos mais importantes intelectuais brasileiros e de convidados internacionais; 800 ensaios produzidos pelos palestrantes e 45 livros. E, para celebrar, Adauto criou a série Entre dois mundos ; 30 anos de experiências do pensamento, com conferências no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte, Salvador e Brasília. Apesar de todo o reconhecimento, Adauto não tem certeza se conseguirá dar continuidade ao ciclo em razão da dificuldade de financiamento para o projeto. ;Eu gostaria de discutir as mutações políticas no próximo ano;, comenta Adauto. Nesta entrevista, ele fala sobre as mutações das máquinas, o vazio dos valores e a necessidade de se retomar a potência do pensamento pela arte e pela filosofia.
A gente tem a sensação de que o pensamento não consegue acompanhar a velocidade vertiginosa das transformações ocorridas no mundo. O que está acontecendo?
Há 10 anos propomos um conceito que ainda não é muito desenvolvido pela academia, o da mutação. O que acontece hoje não é propriamente uma crise, mas uma mutação nos conceitos, nas normas morais, nas mentalidades, na política e na cultura. Essa mutação é produzida pelas revoluções tecnocientífica, biotecnológica e digital. Nós tínhamos a expectativa de promover uma revolução humanista. Peter Sloterdijk diz que quando pensamos que a revolução seria feita pela classe operária, outra revolução acontecia e não nos dávamos conta: era a da tecnociência.
Que problema a revolução da tecnociência coloca para as nossas vidas?
O problema é que a revolução da tecnociência é colocada no vazio do pensamento. Estamos vivendo, segundo o poeta Paul Valery, a barbárie dos fatos. Ele dizia que nenhuma sociedade se estrutura sem as coisas vagas: os ideais políticos, as utopias, as concepções artísticas. E, hoje, dominam os fatos, e o pensamento vem a reboque dos acontecimentos. É muito diferente das mutações que nos antecederam: o renascentismo e o iluminismo foram precedidos de grandes concepções filosóficas, artísticas, culturais e políticas. O que precede as mutações que estamos vivendo é o nada, o vazio.
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