Diversão e Arte

Questões relacionadas à identidade africana e raça inspiram artistas do DF

Os artistas negros existem, são muitos e produzem bastante, mas ainda carecem de acesso e visibilidade

Nahima Maciel
postado em 28/08/2016 07:30
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Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população brasileira se declara negra ou parda. No entanto, a desigualdade social no país é tanta que 79% do 1% mais rico do país é branco. Essa equação tem reflexo perverso nas artes plásticas. A média de artistas negros na Bienal Internacional de Artes de São Paulo não passou de 4% na primeira década do século 21. Eles também não fazem parte das listas de representações das galerias mais importantes do país. Mas isso não quer dizer que os artistas negros não existam. Eles existem, são muitos e produzem bastante. Por que, então, eles não aparecem com frequência em exposições e galerias?

Para a artista Denise Camargo, professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB), a resposta é a mesma que faz com que os 54% da população brasileira que se declara negra também não esteja em evidência. ;Eles estão em todos os lugares, como todos os negros deste país, mas não estão nas estatísticas. Os artistas negros existem e, na hora que você abre um circuito, eles aparecem;, garante a fotógrafa. As políticas públicas traduzidas em editais com cotas têm ajudado abrir espaço para essa produção, mas ainda há muita dificuldade.

O quadro, Denise acredita, tem mudado e isso é importante para estabelecer referências. Duas vezes vencedora do Prêmio Nacional Expressões Culturais Afro-brasileiras, Denise conta que levou algum tempo para perceber a presença da problemática de identidade no próprio trabalho. A falta de referências não ajudou. ;O fato de não ter a referência de outros artistas faz com que você também não tenha um trabalho localizado na questão;, explica. Hoje, parte de sua produção está concentrada em investigar a ancestralidade e a identidade afro-brasileira. É o caso de ensaios como E o silêncio nagô calou em mim, sobre as tradições de matriz africana no Brasil, e Cor de pele, série de retratos sobre a paleta de cores da pele dos brasileiros ainda em produção.

Em Brasília, alguns nomes são recorrentes quando se trata de questões de identidade e cultura de matriz africana, mas ainda são poucos que ganham algum destaque. Recentemente, Antonio Obá esteve entre os três vencedores do Prêmio Transborda e Dalton Paula, nascido em Brasília e radicado em Goiânia, foi selecionado para a 32; Bienal Internacional de Arte de São Paulo. ;Aqui no Centro-Oeste tem pouquíssimos artistas negros. No Brasil tem poucos, se você for pensar na nossa representação de fato, com mais de 50% da população brasileira. Considero que é muito pouco. Outro dia dei uma entrevista e me perguntaram o que achava de ser o único artista negro da representação brasileira. Eu nem sabia que era;, conta Dalton Paula, cujas performances e pinturas procuram explorar o lugar do negro na sociedade brasileira.

Sincretismo
Premiado por uma performance na qual rala uma imagem de gesso de Nossa Senhora Aparecida, Antonio Obá incorpora ao trabalho a discussão sobre o lugar do negro na sociedade com o intuito de questionar temas como sincretismo e privilégio de certas identidades em detrimento de outras. Ele acredita que o debate no meio artístico tem crescido, mas ainda é incipiente. ;Tem se falado bastante no sentido de conscientizar para algo que talvez não ganhasse visibilidade tão grande. Acho que essa discussão é parte de algo que não era tornado tão visível;, diz. ;E, às vezes, há uma falta de questionamento, de se dizer ;bom, mas de que corpo você está falando, por que é dessa maneira?;. Não no sentido de desmerecer, mas de problematizar todo um quadro social.;

Esse mesmo corpo aparece de forma explícita nas pinturas de Josafá Neves. O artista já foi jornaleiro, balconista e garçom antes de conseguir se estabelecer graças à própria produção artística. Viver de arte é difícil, mas fica mais complicado quando se é negro. Autodidata, Neves produz uma pintura cuja característica técnica é ser feita sobre fundo negro. A opção não é gratuita, tem um suporte ideológico e um sentido especial para o artista empenhado em explicitar temas como discriminação racial e identidade. Várias vezes, ele ouviu pedidos para que ;clareasse; as pinturas porque eram muito escuras. ;Eu disse que não, que ia continuar porque não tinha ninguém fazendo isso. Meu trabalho é negro e vai ficar cada vez mais negro;, avisa. ;A arte é discriminatória. Se você pega a história dos artistas brancos, eles sempre tiveram acesso à casa grande, ao castelo. E o negro, geralmente, mora na periferia e não tem acesso à escola. E muita gente nega, não quer falar sobre isso;

Em uma de suas séries mais recentes, Diáspora, o artista retrata grandes intelectuais e pensadores brasileiros negros cujos nomes permanecem desconhecidos de boa parte da população. Para este ano, Neves trabalha em Orixás, projeto de pinturas e gravuras dedicadas a 16 símbolos das religiões de matriz africana praticadas no Brasil.

Influência
As condições de produção dos artistas negros também têm papel fundamental no resultado dos trabalhos e suscitou pesquisa de Nelson Inocêncio, professor da UnB. Ele queria entender como a situação na qual os artistas negros trabalham influi na confecção das obras. ;Percebi que havia um descompasso entre as condições de produção dos artistas negros e brancos. Desde o século 19 há a presença dos artistas negros nas artes. É tímida, mas tem. E eles sempre tiveram muita dificuldade de se manter nesses espaços;, conta. Os movimentos mais importantes da arte brasileira, como o modernismo, tiveram a participação de artistas negros. ;Mas eles não tiveram destaque;, lamenta Inocêncio. ;É difícil as pessoas aceitarem isso na cultura, dizem que não existe, mas não é bem assim.;

O fotógrafo Carlos Cruz sente no cotidiano que não é bem assim. Carioca radicado em Brasília há mais de três décadas, ele desenvolve um trabalho de registro de comunidades quilombolas de União dos Palmares (Alagoas). ;Quando se trata de comunidade afro-brasileira, as portas se fecham, os espaços se reduzem. É uma discriminação sutil. As pessoas não têm interesse que você mostre o lado real da situação;, lamenta o fotógrafo.









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