Diversão e Arte

Peça 'BR Trans' faz manifesto contra o preconceito no Cena Contemporânea

Com discurso político, espetáculo debate também a violência em relação a travestis e transsexuais

Rebeca Oliveira
postado em 31/08/2016 07:01

Silvero Pessoa encarna Gisele em cena: densa, peça é resultado de pesquisa do ator e dramaturgo

O debate sobre questões de gênero é urgente, sobretudo em uma sociedade marcada por dados alarmantes como a brasileira. Uma ONG europeia (Transgender Europe) constatou, no ano passado, que o país é o que mais mata transsexuais no mundo. Foram 600 assassinatos ; um número que pode aumentar se considerado os casos não investigados, que, infelizmente, não são poucos. Faz-se necessário, então, um levante sócio-cultural que escancare essa situação alarmante, como acontece em BR Trans, espetáculo que integra a programação da 17; edição do Cena Contemporânea, que ocorre até o próximo domingo.

A peça traça uma cartografia artística e social de travestis e transsexuais do Nordeste, onde o Coletivo Artístico As Travestidas está radicado, junto a pesquisa realizada pelo Somos ; Pontão de Cultura LGBT, sediado em Porto Alegre. As semelhanças, diferenças e contradições das duas regiões se amalgamam em uma peça densa. Como em boa parte das apresentações do festival, projeções e a trilha ao vivo criam o imaginário ideal para que o público exercite a empatia por Gisele, personagem de Silvero Pereira, criador do coletivo artístico.
[SAIBAMAIS]
Com trabalhos iniciados em 2005, o grupo atua em duas frentes: a primeira trata do teatro como instrumento de inclusão social, quando se debatem assuntos como preconceito, sexualidade, violência e afetividade em oficinas, workshops e pesquisas, além dos espetáculos. A segunda, mais metalinguística, levanta questões sobre a relação entre a figura do ator e do transformista.

Tensões


Na contramão do obscurantismo de parcela da população, a esfera cultural tem levantado questões em relação ao preconceito contra travestis e transsexuais. Figuras como a modelo Lea T (que representou o Brasil na abertura das Olimpíadas) e a banda paulista as Bahias e a Cozinha Mineira (uma das atrações do Festival Satélite 061, que acontece entre os dias 13 e 25 de setembro) trazem representatividade a cena cultural nacional.

;Quando se é travesti certos posicionamentos são necessários por conta da grande exposição violenta que sofremos. É uma questão de sobrevivência;, relatou a vocalista Raquel Virgínia ao Correio, à época do lançamento do segundo disco da banda, intitulado Mulher. Transsexuais, ela e Assucena Assucena se dividem nos vocais. Lá fora, nomes como Caitlyn Jenner (que ganhou em reality show onde revelou o processo de transição de sexo) e Laverne Cox (da série Orange is the new Black) também aparecem como porta-vozes de transsexuais, travestis e transformistas.

Entrevista // Silvero Pereira


Já é possível constatar se a representatividade na arte alterou a realidade em que vive a comunidade trans?
Mexe, sim. Na política e academia ainda vai levar tempo para trazer essa discussão. Já na arte, a empatia é quase imediata, acontece em viés da catarse, da identificação. Ela é muito importante exatamente por isso. Consegue modificar um pensamento quase que de imediato, no puro contato com a obra.

O debate sobre questões de gênero nunca foi tão levantado no país. Entretanto, junto a essas questões, surge um forte levante político e social extremamente conservador...
É um reflexo do que entendemos sobre gênero hoje. Essa discussão começou na década de 1940. Estamos há 70 anos debatendo ; diante de uma sociedade que tem milhares de anos. As questões ainda não estão claras para a sociedade, e felizmente, nas universidades, há a entrada de pessoas que têm se aprofundado nessas temáticas. Na política e na academia essas mudanças demandam um tempo, mas temos a esperança de que aconteçam, em um futuro próximo.

É possível falar em conciliação em um país como o nosso, marcado por polaridades?
Não consigo dar essa resposta. O Brasil só finge que é um país igual para todos. Mas não somos. Somos machistas, patriarcais, burgueses. Pensamos nas pessoas mais pelo que elas podem nos oferecer e pelo espaço geográfico onde elas vivem. Nossos valores, no país, variam muito por essas condições. O Brasil ainda é esse lugar preconceituoso e violento.

Monólogo, manifesto ou performance: como classifica a narrativa de BR Trans?
É um monólogo-manifesto. Um trabalho documental a partir de experiências que eu presenciei e vivenciei sobre o assunto. Mapeei Porto Alegre para saber onde encontrar essas meninas, como universidades, presídios e nas ruas. As histórias que mais me comoveram viraram o espetáculo.

Quanto de Gisele há em você?
Não sei exatamente onde começa a Gisele e onde termina o Silvero. Durante muito tempo, transitei por várias identidades. Hoje, fico confortável em dizer que me sinto bem sendo os dois, meio a meio. Não sei exatamente dizer quem é quem, fico à vontade nos dois papeis. Falamos muito disso em BR Trans. É um espetáculo autofágico antropológico esquizofrênico, brincamos. Embora tenha a minha relação direta com o universo trans, falo do meu atravessamento com esse contato com a personagem, que me modificou e me transformou em outra pessoa.

BR Trans quebra a quarta parede em diversos momentos da apresentação. Como se dá essa troca com o público?
Essa é uma preocupação que tem a ver com o próprio processo de montagem do trabalho, de evitar esse distanciamento. Essa história de quebrar a parede é uma metáfora estética no sentido que de que consegui quebrar as barreiras e ter um contato afetuoso com as minhas fontes de pesquisa, não apenas de investigação, mas de amizade, de carinho, preocupada com quem elas são de verdade, e não com estereótipos.

Como se deu o contato com esse universo?
Faço teatro há 20 anos mas há 16 anos montei o primeiro trabalho sobre isso. Ele estreou em 2002 e foi minha primeira pesquisa de contato com esse universo, chamado A flor de dama. No começo, foi bem empírico, intuitivo. Eu estava começando a fazer teatro, tinha acabado de começar a faculdade de artes cênicas, e meus conhecimentos ainda era obscuros. Depois dessa peça, criei o coletivo, que trabalha só com essa temática, e ao longo desses anos estamos produzindo de uma maneira acadêmica, teórica e prática.

E como fica a dimensão estética?
Na questão estética, trabalhamos muito com a volta na travesticidade em cena, sempre muito usada no teatro. Temos outra questão que é se travestir para falar sobre travesti. É muito difícil delimitar. No coletivo, inclusive, temos esse paradoxo de começar a se entender e ter mais conhecimento e propriedade sobre identidade de gênero, e a nossa identidade artística.


PROGRAMAÇÃO DE HOJE

Naufragé(s) (Brasil ; França)
Teatro Funarte Plínio Marques (Eixo Monumental; 3322-2076). Sinopse: Artista se utiliza de texto ficcional para melhorar a própria história, na intenção de situá-la entre grandes clássicos românticos. Ingressos a R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). Não recomendado para menores de 14 anos.

O equilibrista (DF)
Às 20h, no Teatro Sesc Paulo Autran (CNB 12, AE 2/3, Taguatinga Norte; 3451-9103). A nova masculinidade é esmiuçada pela artista Luciana Martuchelli, em um texto que confronta heranças, modelos e legados a originalidade. Entrada franca. Não recomendado para menores de 12 anos.

De carne e concreto (DF)
Às 20h, na Galeria Athos Bulcão (Via N2, anexo ao Teatro Nacional; 3322-7801). Sinopse: Performance, artes visuais e dança contemporânea se encontram no décimo espetáculo da companhia de dança Anti Status Quo. O objetivo é entender a relação do homem com o corpo. Ingressos a R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). Não recomendado para menores de 18 anos.

O filho (SP)
Às 20h, no Galpão Marc Systems (CSG 10, s/n ; Lote 15,Taguatinga). Sinopse: filho sai em busca do pai e precisa lidar com a superficialidade das relações e a rejeição da mãe. Ingressos a R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada), à venda no local, uma hora antes da apresentação. Não recomendado para menores de 18 anos.

BR Trans (CE)
Às 20h, no Teatro Sesc Newton Rocha (QNN 27, Área Especial Lote B, Ceilandia Norte; 3379-9586). Exclusão e violência, superação e transformação. São esses os quatro pilares em que se baseiam as conversas com travestis, transsexuais e transformistas de Porto Alegre, em falas honestas que deram origem ao espetáculo. Entrada franca. Não recomendado para menores de 16 anos.

Kassandra (Cia la Vaca/SC)
Às 21h, na Boate Star Night (SCS, Quadra 5; 3039-4055). Sinopse: Como de praxe, a companhia utiliza um espaço pouco convencional para contar a história de uma princesa grega que nasceu menino e se torna uma guerreira do sexo. Ingressos a R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). Não recomendado para menores de 18 anos.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação