Pedro Juan era força, a virilidade, a resistência. Fabián, a delicadeza, a sensibilidade, o conhecimento. Duas personalidades bem diferentes, porém complementares. O escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez não havia percebido o quanto ele e Fabián eram opostos e complementares até iniciar a divulgação de seu novo romance, Fabián e o caos. ;Todo esse pensamento veio depois que escrevi o livro;, conta o autor, em entrevista por telefone de Tenerife, ilha espanhola do arquipélago das Canárias, onde costuma passar temporadas. ;Tudo isso foi muito inconsciente. Na realidade, eu era assim. Pedro Juan sou eu, e Fabian é o pianista Fabio Hernandez. E agora me dou conta quando, me pergunto e procuro encontrar explicações.;
A escrita de Gutiérrez sempre andou colada na narrativa autobiográfica, especialmente em livros como O rei de Havana e Trilogia suja de Havana, mas Fabián e o caos assume essa relação de forma explícita. Inspirado em grande amigo do autor, Fabián é um pianista homossexual engolido pelo moralismo destrutivo da revolução de 1959, que destituiu o ditador Fulgêncio Batista, levou Fidel Castro ao poder e instaurou o comunismo na ilha caribenha. Considerado um degenerado pelo regime, o artista é retirado da orquestra na qual trabalhava e condenado a trabalhar em uma fábrica de carne enlatada.
Filho de imigrantes espanhóis já idosos e cuja ingenuidade impedia que tivessem noção dos acontecimentos, Fabián vivia isolado, mergulhado no estudo da música e nas longas horas ao piano. ;O título do livro explica essa situação. O caos era o que estava acontecendo fora da casa, mas também é um pouco Pedro Juan, um tipo caótico, que aparece de vez em quando. Eles viviam assim realmente, eram imigrantes espanhóis, acho que nunca se integraram realmente;, conta o autor. ;E Fabián, mesmo integrado, se mantinha um pouco isolado e solitário com seu piano.;
Pedro Juan Gutiérrez levou 20 anos para decidir se escrevia ou não a história de Fabián. O romance não é um livro de memórias, até porque o escritor não tinha intenção alguma de escrever algo histórico, mas é bastante ilustrativo de um dos momentos mais críticos já enfrentados pela população cubana. ;Os anos 1960 e 1970 foram muito importantes em Cuba e eu queria contá-los, mas não do ponto de vista dos historiadores que contam, de maneira oficial, a macro-história do país; explica. ;A mim interessa mais a micro-história, o conceito de história pessoal, o que acontece com as pessoas, sobretudo se são vítimas atingidas por um momento histórico determinado, como Fabian.;
Dos 21 livros escritos por Gutiérrez, apenas cinco foram publicados em Cuba. Trilogia suja de Havana, um dos mais conhecidos, permanece inédito na ilha. Fabián e o caos saiu na Espanha, Grécia e Itália, além do Brasil. ;Mas espero que, em algum momento, seja publicado. Melhorou um pouco a situação da publicação de meus livros nos últimos anos;, diz o escritor. Hoje, Pedro Juan Gutiérrez divide o tempo entre Havana e as Canárias, mas garante que passa mais dias no país natal e observa as mudanças com certa curiosidade.
A crítica política sempre permeou seus livros, mas alguns trazem isso de maneira muito sutil. Em Fabián e o caos, você fala de política de maneira mais explícita. Por quê?
Sim, neste caso eu teria que ser mais explícito, explicar mais o que havia acontecido porque precisava de uma contextualização histórica. Eu não queria fazer um livo de história, mas tinha que dar alguma informação básica para que o leitor se colocasse no contexto.
Você se sente mais livre para falar sobre a situação política da ilha hoje, com os processos de abertura?
Sim. Hoje há uma abertura maior do que há alguns anos, as pessoas falam com mais clareza, sobretudo os jovens, e de maneira mais democrática. Eles sabem que a liberdade não é entregue a ninguém, a liberdade tem que ser conquistada com suas próprias ações, seu próprio pensamento. Creio que sim, me sinto mais livre. E também há mais tempo em relação ao que aconteceu. Essa etapa já vai se estabelecendo como história e creio que isso é importante. Sou um dos tantos milhões de protagonistas da revolução cubana de 1959 e acho que, antes de irmos embora, devemos deixar nossa memória, nosso patrimônio, por isso sigo escrevendo com valentia e profundidade.
Mas também não é um livro de memórias. O que há de ficção em Fabián e o caos?
É um romance, uma ficção. Não me atrevi a escrever um livro de memórias porque não queria utilizar Fabio dessa maneira. Um livro de memórias não funcionaria para mim. Eu queria escrever um romance porque um romance sempre pode sintetizar, condensar, explicar as coisas de maneira mais sintética. E assim o fiz. Levou muitos anos, mas é um romance, basicamente.
Como você encara a situação de Cuba hoje, com a abertura do regime?
O que está acontecendo é muito bom, inclusive o restabelecimento das relações diplomáticas com os Estados Unidos. Pouco a pouco há uma abertura, porque não é possível abrir totalmente 60 anos em dois anos. Vamos lentamente, resolvendo, sobretudo, questões da macro-economia. Parece que vamos modernizando o país. Hoje, muitas pessoas têm celular e acesso à internet, mas ainda é um acesso muito precário. Quando estou em Cuba quase não consigo me conectar à internet, mas há dois anos não havia nada. Algo concreto para todos os cubanos hoje é que precisam enfrentar a modernidade, o capitalismo, a sociedade moderna, como fazem todos os países modernos. E as sociedades modernas têm coisas boas e ruins.
Que tipo de sistema acha que é possível para ilha? Um capitalismo de Estado, como na China?
Neste momento, acho que em Cuba o que se estabelece é uma espécie de projeto social-democrata, o que não significa socialismo e sim uma espécie de projeto social-democrata que vai se preocupar com a saúde pública, com a educação e com algumas coisas subvencionadas. Uma espécie de social-democracia muito rústica, rudimentar. Mas claro, teria que ter muito mais abertura e liberdade de expressão. Mas está sendo lançada uma semente nesse sentido.
Como Pedro Juan e Fabián são duas personalidades complementares? Embora muito diferentes, eles são muito amigos. Você percebia isso em relação a Fabio?
Fomos amigos durante muitos anos, gostávamos muito um do outro, como se fôssemos primos, e nos comunicávamos muito. Às vezes, eu chegava na casa e ele dizia que eu era um comunista de merda. Funcionávamos como o ying e o yang, éramos muito antagônicos, mas tínhamos muito carinho um pelo outro. Não tem outra explicação. Para mim, tanto fazia ele ser homossexual ou não. Eu vivia minha vida à minha maneira, minha loucura, meu caos, e acho que absorvíamos muito um do outro. Ele era um tipo muito culto, tinha estudado história da arte, sabia muito de música. E eu era muito ignorante, mas era muito forte, tinha muitas mulheres, muitas namoradas, uma vida muito ativa e, nessa época, meu modelo a seguir era Hemingway. Eu queria ficar famoso, escrever e conhecer o mundo. E ele não se interessava por isso e sim por Proust e Thomas Mann. E eu absorvia essa cultura. Eu queria ser como ele, ter todas essas informações.
Fabián foi vítima de um sistema?
Fabián foi mais vítima da situação. Os homossexuais foram reprimidos de maneira brutal, estúpida, absurda e injusta. Milhares de homossexuais trabalhavam no setor cultural naquele momento, bailarinos, músicos, atores, dramaturgos, cineastas. E somente porque ele tinha um tipo afeminado, disseram que não funcionava para trabalhar em cultura. Não davam explicação do porquê, simplesmente disseram que não tinha condições de trabalhar em cultura. E 15 dias depois chegou uma carta para que fosse trabalhar, obrigatoriamente, na fábrica ou num campo de cana, um trabalho bruto, duro, para que integrasse o proletariado e se convertesse em um homem. Mas era um homem frágil, vulnerável, não tinha o caráter de Pedro Juan, mais flexível, mais forte, com uma personalidade mais definida. Ele não era uma pessoa para trabalhar num lugar assim, foi uma situação muito injusta. Milhares de homossexuais passaram por situações difíceis em Cuba.
E quem era adequado para trabalhar em cultura?
Quem fosse revolucionário. Precisava disso para trabalhar em coisas melhores. Eu fui trabalhar como jornalista, mas passei por várias provas para saber se reunia condições políticas adequadas até que me dessem o trabalho de jornalista.
Serviço
Fabián e o caos
De Pedro Juan Gutiérez. Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman. Alfaguara, 196 páginas. R$ 44,90.
A matéria completa está disponível aqui para assinantes. Para assinar, clique aqui