postado em 05/09/2016 16:17
"Olha que bichona", disse um dos moleques na primeira fila do Teatro Newton Rossi, em Ceilândia. Ele apontava o dedo para o ator Silvero Pereira, que já ocupava o palco. Na verdade, quem estava ali em cima era Gisele, protagonista encarnada por Silvero no belo trabalho BR Trans, que integrou a programação da 17; edição do Cena Contemporânea, com sessões agendadas exclusivamente em Ceilândia.
Na plateia, pelos menos 90 alunos de escolas públicas da região. A maioria esmagadora jamais havia pisado em um teatro. E estavam ali para escutar Gisele, que falaria sobre transexualidade, gênero, violência. O trabalho impecável de Silvero na pele de uma travesti tomou conta da sala. Aos poucos, as conversas cessaram, os celulares foram desligados e olhos atentos acompanharam os movimentos do/a artista no palco. O garoto que xingou Silvero no início da apresentação tentava, sem sucesso, esconder as lágrimas ao final.
Isso, meus caros e minhas caras, ganha um belo nome no antro da política e da prática cultural: formação de público. E ouso dizer que as atuais tentativas de ruptura cênica não mais adentram o campo do experimentalismo ou do ineditismo, mas recai sobre um artifício tão antigo, mas revolucionário: contar boas histórias. E essa edição do Cena foi nítida nesse sentido.
Convenhamos, o antes celebrado "não convencional" não anda tão não convencional assim. O diferente, vejam só, tornou-se ordinário, embora muitos ainda não tenham percebido. O desespero por uma suposta inovação na estética ou na proposta anda cegando muitos artistas e produtores que acreditam, ferozmente, que alcançam algum impacto na plateia. Mas, na verdade, apenas se repetem. Salvo raras exceções.
O Teatro da Vertigem, por exemplo, desembarcou em Brasília em torno de muita expectativa. E com razão, já que estamos falando de um dos mais expressivos grupos de pesquisa de linguagem no país. Mas não surpreendeu com um enredo kafkiano mais explorado que os amores trágicos de Shakespeare, com um cenário poluído, com uma metáfora peguiçosa para o sexo ou com a escolha por um palco que ainda cismam de adjetivar como "atípico", embora talvez tenha sido novidade nos anos 1960.
Mas não foram os únicos. Pelo contrário. Tivemos a "original" ideia de pegar um texto clássico e tentar "subvertê-lo", ou ainda, pasmem vocês, a insistência de que dois abdômens definidos e um par de peitos segurem espetáculo. Sem contar o desfile das genitálias esvoaçantes que, pelo amor de Mãe Menininha, não comovem mais ninguém desde a adolescência de Zé Celso.
Ousados talvez tenham sido os espanhóis de Distancia siete minutos, que falaram sobre o que não se fala: suicídio. E o fizeram de forma delicada, como deveria ser. Ou talvez os açucarados de Naufragé(s) que nos mostraram que as melhores histórias, de fato, são as comuns.
De forma alguma, que fique claro, trata-se de uma crítica à curadoria (com tantos acertos igualmente listados), que nos oportunou essa troca com os mais relevantes seres teatrais nacionais e mundiais. Esse debate suscitado, muitas vezes por meio de peças pouco apreciadas, faz parte de um festival de teatro, que não aparece para nos presentear com uma lista de espetáculos incríveis (até porque esbarramos no subjetivo aqui), mas justamente para nos fazer repensar.
O Cena ficou marcado por esses novos espectadores de Ceilândia, do Varjão e da Estrutural. Esses sim, os verdadeiros palcos não convencionais. Ficou marcado pelo depoimento de um artista baiano que relatou: "Em nossa apresentação em Ceilândia, tivemos uma entrega calorosa do público. Uma catarse. Esbarramos com o povo. No Plano, no entanto, a coisa demorou. Parecia que estávamos nos apresentando para um grupo de finlandeses". Ficou marcado pela postura política daqueles que recorrem à arte como formação cidadã e que gritaram "Fora Temer" em quase todas as sessões. Ficou marcado pela fala do dramaturgo e escritor espanhol Carlos Gil Zamora, que atestou: "Forma-se público com bons espetáculos". Ficou marcado, acima de tudo, pela certeza de que o mais ousado atualmente talvez seja investir no simples.
*Diego Ponce de Leon é crítico e setorista de teatro, colunista e jornalista cultural do Correio Braziliense.
O grito de Ceilândia durante o Cena Contemporânea:
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