postado em 11/09/2016 07:30
Talvez nem percebemos, mas estamos constantemente nos diferenciando. No ambiente profissional, em família, no cotidiano atribulado e, principalmente, nas redes sociais, esbarramos com o desejo constante de nos definirmos. Um anseio em declarar nossas convicções políticas, condições sociais ou orientações sexuais. E somos julgados por elas. Muitas vezes, de uma forma diferente do que gostaríamos.
Assim, tornamo-nos branco ou negro, homo ou hétero, rico ou pobre, petista ou peemedebista. Com direito a adjetivações autoimpostas ou sugeridas pelo outro: elitista, militante, enrustido, conservador, intolerante, vitimista. Há quem morra por isso. Há quem mate por isso. Há quem apanhe por isso. Há quem se vanglorie por isso. Criou-se uma cultura de segregação, de nichos, de grupos ideológicos. Há tempos, porém, ninguém lembra que apesar de todas essas características (ou acusações) somos igualmente humanos. E, portanto, deveríamos nos respeitar. Ou não?
O humanismo certamente transgride esse conceito restritivo de nos vermos enquanto humanos, até por ser um termo empregado nas mais diversas áreas do conhecimento. Filosofia, política, psicologia, antropologia, história, entre outras, têm algo a dizer sobre o humanismo. Mas, se for possível traçar um consenso, seja qual for a premissa em questão, dificilmente não faríamos um bom uso das lições do pensamento humanista em prol do convívio social.
Embate político e social
O deputado Jair Bolsonaro, apontado por muitos como anjo da guarda e por tantos outros como o próprio anticristo, admite a divisão ideológica na qual estamos afundados, mas faz questão de culpar a gestão petista: ;Tivemos anos de política governamental de luta de classes. Como vou conquistar e dominar? Dividindo! Aqui no Brasil é luta de homem contra mulher, branco contra negro, homo contra hétero, pai contra filho, rico contra pobre, Norte contra o Sul.;
No que diz respeito ao humanismo, conceituado por Bolsonaro como ;a prática do bem e a valorização do ser humano;, o deputado se revelou adepto da filosofia desde os tempos em que foi ;civil e militar;, pregressos à carreira parlamentar. ;Nunca pensei em mim, sempre em ajudar os outros. Em função disso, recebo minhas severas críticas. É o jogo político brasileiro;, comenta Bolsonaro, conhecido por enaltecer o regime militar e por listar figuras controversas, caso de Brilhante Ustra, como referência pessoal, mesmo diante da atribuição de ;torturador; atribuída ao coronel pela Justiça.
Ainda no embate sobre a condução da política nesse panorama desumano, Bolsonaro voltou a criticar o governo Dilma Rousseff por meio de um exemplo: ;Ela esteve na ONU e disse que o Brasil estava de braços abertos para os refugiados. Não é assim! Você não pode abrir as fronteiras do seu país para entrar gente à vontade aqui. Quem são essas pessoas? Poderão ser inseridas no mercado de trabalho ou vamos apenas importar mais um problema social?;.
Diante da colocação, a reportagem imediatamente perguntou ao parlamentar se os questionamentos não seriam justamente contraditórios a práticas humanistas, ao que ele respondeu: ;Nada a ver! Foi humanitário Lula acolher Cesare Battisti aqui como preso político? Um cara com quatro homicídios. Não pode ter gente com comportamento semelhante a esse nesses países todos que estamos acolhendo? Em São Paulo, temos 30 mil haitianos sem qualquer controle. A maioria é gente boa? Sim. Mas, uma minoria de gente ruim faz uma desgraça para toda a sociedade.;
Do outro lado da rua
;Há um crescimento dos discursos de ódio na política, no âmbito religioso, nos meios de comunicação e em outros espaços de reprodução de narrativas, que acaba impactando na vida cotidiana das pessoas. Isso é muito ruim;, observa o deputado Jean Wyllys que, assim como Bolsonaro, enxerga a segregação que aparta os brasileiros. Certamente, por motivos diferentes.
;Ser diferente;, inclusive, permeia o discurso do parlamentar baiano. Questionado se os políticos não andam esquecendo essa premissa de sermos todos humanos, antes de qualquer peculiaridade, Jean esclarece: ;Somos igualmente humanos, e somos também diferentemente humanos. A igualdade deve ser entendida como antônimo da desigualdade, e não da diferença. Eu quero viver num país onde a diferença seja respeitada e inclusive celebrada;.
O jornalista e blogueiro Leonardo Sakamoto, autor de O que aprendi sendo xingado na internet, concorda e acredita que o principal desafio talvez esteja justamente na aceitação daquilo que nos parece diferente: ;O sentimento de empatia é dos mais difíceis. Uma empatia real, de se colocar no lugar do outro. Chegar ao ponto de dizer ;eu posso discordar dessa pessoa, mas acredito que ela mereça usufruir dos mesmos direitos que eu;;. Um ponto ainda distante, vide as expressões de repulsa que ocupam as as redes e o dia a dia.
;Contra esses discursos de ódio, precisamos resgatar a justiça social, a solidariedade e a cultura, porque a cultura ; pensada como cultura diversa, democrática e plural ; é o grande adversário das formas de totalitarismo e estupidez;, atesta Jean Wyllys. Alinhado ao discurso do parlamentar, Sakamoto resume o que compreende quando pensa em humanismo e declara, quase em forma de convite: ;Não é Deus, não é dinheiro. O debate precisa ser centrado na dignidade humana. Todos os outros sistemas da sociedade devem convergir para o ser humano, antes de mais nada. A dignidade humana não pode ser consequência, mas a causa e a razão pelas quais a gente faz o que a gente faz;.
Bolsonaro, Jean e Sakamoto conhecem como poucos a profundidade da incompatibilidade de gênios que nos cerca. Acabaram se tornando figuras proeminentes dessa polarização, justamente por representarem particularidades ideológicas contraditórias, como o conservadorismo religioso e os direitos da comunidade LGBT. Ao assumirem as respectivas convicções, são expostos ao movimento contrário. Ferozmente xingados e agredidos, ilustram muito bem o título desta reportagem: ;Por onde anda o humanismo, afinal;. Aliás, nunca foi tão oportuno responder à indagação.
// A percepção de cada um
A reportagem entrou em contato com nomes expressivos do meio cultural em diferentes áreas, questionando: "O que lhe vem à mente quando pensa em humanismo?"
;Solidariedade, relações humanas, gente ajudando gente. Acho que humanismo tem a marca da humanidade, atitude que eleva e torna mais justa as relações entre povos, culturas e ações coletivas;
Beth Goulart, atriz
;Longe de querer ser simplista, penso em tolerância, união e respeito;
Marcelo Bonfá, músico
;À parte do uso da palavra ligado a conceitos filosóficos específicos, eu penso na responsabilidade do homem em transformar e se deixar transformar pelo ambiente em sua volta, expandindo sempre sua consciência sobre o todo e se enxergando como parte de uma comunidade que é mais potente quanto mais iguais são as oportunidades;
Camila Márdila, atriz
;Humanismo? Como a maioria dos homens está longe!”
Otávio Müller, ator
;Penso em diversidade. No Brasil, ainda convivemos com racismo, misoginia, machismo, homofobia, que mata em níveis absurdos, e precisamos fazer um pacto contra esses ódios, mas a diversidade do brasileiro, esse orgulho pela nossa diversidade, acaba prevalecendo;
Marcelo Calero, ministro da Cultura
;De cara, o que me vem à cabeça é Mandela!”
Denise Fraga, atriz
>> Quatro perguntas // Sérgio Vaz
O poeta Sérvio Vaz é considerado uma das principais vozes da cultura periférica nacional, não somente por conta da contundência dos versos, mas igualmente em virtude das intervenções nas comunidades, como a Semana de Arte Moderna da Periferia, ou por denunciar o descaso público com setores considerados marginalizados. Ele segue conduzindo saraus pelas periferias que passa e dando voz a quem não costuma ser escutado. Pelo menos, não do lado de cá.
A partir da sua vivência, o que lhe vem à cabeça quando pensa em humanismo?
O respeito ao ser humano em sua total essência, não importando quem ou de onde ele é.
Estamos, então, propagando uma cultura de segregação em vez de aproximação?
Essa cultura existe desde sempre: dividir para dominar. Somos preparados para odiar uns aos outros, e a gente nem se dá conta disso. Somos escravos de um mundo no qual nos dão a sensação que somos livres, por isso não questionamos sobre a liberdade. Somos livres para pensarmos apenas o que eles querem. E, nesta disputa por migalhas de pão, é preciso odiar a concorrência.
Antes de sermos pobres ou ricos, negros ou brancos, não estamos esquecendo de que somos humanos? Não seria esse o elo que nos une, mas que anda abandonado?
Concordo plenamente com isso. Vivemos em confronto uns com os outros justamente por falta de humanidade. Tornamo-nos apenas números de estatísticas. Um número no RG e no CPF e um número na lápide para ser esquecido. Perdemos a vergonha de sermos carrascos daqueles que não concordam com nossas opiniões.
De que a maneira a poesia pode auxiliar nessa busca pelo respeito ao próximo?
Creio que a poesia não nos deixa enlouquecer e, de alguma forma, nos humaniza. A poesia tem o dom de nos lembrar quem somos, e que amar a vida e o próximo é amar a si mesmo. E isso que digo não tem nada a ver com religião, mas com humanidade.
Assista ao vídeo e responda: você se levantaria?
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>> A edição impressa contou ainda com artigo de Rafael Ruiz, doutor em história social pela USP, e com depoimento de Adriano Holanda, pós-doutor em psicologia pela UnB e autor do livro Fenomenologia e humanismo - Reflexões necessárias