postado em 02/10/2016 07:30
O enredo começa na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ali, em Vigário Geral, o moleque Jonathan Andrade aprendeu que era preciso trabalhar para subir em qualquer palco. E a arte do labor foram os pais que o ensinaram. Desembarcou em Brasília, em definitivo, aos 14 anos. Do Rio, trouxe a alma do morro, o suor da periferia e, acima de tudo, a vontade de se levantar a cada alvorada. Aqui, fez-se artista. Na Universidade de Brasília e na vida. Enquanto o teatro não pagou as contas, travestiu-se e incorporou a drag Naomi. Meteu o salto, encarou e venceu todas as quebradas, os eixos e os preconceitos deste Distrito Federal. Bateu cabelo, insistiu e se reinventou como diretor e ator. Aclamado por trabalhos ora viscerais (Autópsia), ora singelos (Poeira), Jonathan Andrade traduz o melhor da força cênica da cidade.
>>Entrevista // Jonathan Andrade
Da periferia carioca para a capital federal. Uma jornada que não se restringe à mudança física. Como ela se dá?
Ao pobre é exigido que ele invente e reinvente as oportunidades. Não tem para onde correr. Eu sou filho dessa espécie de jornada. De pais professores, meu pai também militar, arregaçando a manga em Vigário Geral para criar três filhos. Suando muito para espantar de vez o fantasma da fome e da falta de oportunidade que se alastrava por gerações. De uma ancestralidade negra de muita resistência, reinvenção, suor e luta. De uma mulher que foi levada de Minas para trabalhar como empregada doméstica na casa de madame da Zona Sul do Rio de Janeiro. Essa é Dionísia, minha vó. Eu sou filho de uma jornada de uma família miscigenada negra que buscou um cotidiano de possibilidades, que lutou por territórios menos hostis, territórios de dignidade e legitimidade.
E quando o artista aparece?
Meu corpo sempre dançou, sempre cantou... Mas acho que o artista surge há 20 anos, quando escrevi pela primeira vez e nunca mais parei. Eu tinha 14 anos, e a escrita chega como sobrevivência. Fome. Acordar só era possível a partir desse acordo. Eu precisava escrever. Escrevendo, eu legitimava uma solidão, uma dor que pareciam latir o tempo todo. Antes mesmo de conseguir acreditar e confiar no mundo, eu confiei no papel, nas vozes que viravam escritos, naquele mundo que eu precisava pulsar. Ali, eu encontrava vida.
Origem, cor da pele, orientações sexuais e sociais te pautam artisticamente?
O que é vivo me pauta. O afeto me pauta antes de tudo. Mas o meu afeto é negro, gay e já foi pobre. É desse corpo que posso falar. Se penso a arte como encontro, encontrar é abraçar toda história e memória de um corpo. Essas são digitais profundas da minha identidade, a pulsão que carrega vários dos meus desejos de mundo.
Como foi encarar a noite brasiliense sob o olhar de uma drag?
Uma das melhores e maiores escolas. Uma drag é puro fluxo de liberdade e autenticidade. Pura multiplicação, presença e encontro com o outro. Durante muito tempo trabalhei como drag na noite e foi meu principal sustento. Embora um ofício muitas vezes incompreendido, transitando por diversos universos de preconceito, a drag é uma ousadia que proclama o respeito. No fundo, todo mundo quer ser autêntico e livre. Uma drag carrega na maquiagem interna, profunda, a intensidade de uma liberdade possível de ser vivida. E isso incomoda, mas transforma.
Sua história de vida foi marcada por uma postura de defesa, de autoproteção. Mas também de réplica. Isso se revela no seu trabalho?
Sempre. Há uma inconformidade e uma esperança ao mesmo tempo. Um cansaço e uma revolta por aquilo que não muda e, ao mesmo tempo, uma ousadia de ressignificar tudo. De resistir e reflorir tudo. Há muitos gritos a serem dados. E esse é o DNA do meu grito, que reverencia as marcas do tempo no corpo, as experiências e as trocas todas que tive. A arte que me interessa é resistência, transformação, e, acima de tudo, arte viva.
Falando sobre o teatro de Brasília, ainda vivemos sob as sombras competentes dos Irmãos Guimarães e de Hugo Rodas?
Falar da história e da formação da maior parte dos profissionais de teatro do Distrito Federal atravessa e mergulha inevitavelmente nesses nomes. Estamos falando de um oceano de influências com fronteiras líquidas, que se misturam a todo instante. O Hugo é uma reverência profunda no meu corpo, assim como vários mestres que tive a oportunidade de conhecer e aprender. Hugo é uma divindade da fome de teatro, a volúpia da criação, a catarse, o corpo político que não se abandona em cena. Uma árvore ancestral que deixará sombra sempre. Pensar o teatro em Brasília é pensar em uma rede de memória insuperável, de uma reinvenção inesgotável. Teatro é o que é, está ou se permite vivo. Então há muitas autenticidades e identidades novas a todo momento. Há contágios, influências, inspirações, contaminações, e é assim que a gente segue tecendo a história do teatro na cidade, no país. Há muitas diferenças, caminhos e impulsos criativos que se materializam de formas muito distintas, mas em vez de pensar sombra, penso em raízes entrelaçadas. Além do alto, o teatro é também um exercício do fundo. O teatro sempre se reinventa.
Podemos falar substancialmente de uma nova geração de teatro brasiliense, capaz de emplacar referências de dramaturgia e concepção? Ou ainda somos e estamos púberes cenicamente?
Há de tudo um pouco. O que se perde, o que se acha. Há potências para todos os lados. Há uma geração ousada chegando com fome, com a fome que o teatro pede. Há uma geração que sinto falta de fundo, de que desça mais degraus dentro do que deseja discutir. Mas há troca.
Por que ainda é tão difícil para o artista de Brasília falar do trabalho do outro sem apelar para o elogio gratuito e pouco producente?
Uma educação que torna raso o encontro. É da mesma ordem cotidiana em que um ;como vai?; virou qualquer coisa. Há pouco espaço para se ouvir, há pouco espaço para ser verdadeiramente contagiado pela presença do outro. Se relacionar exige da gente perder muitos territórios e ressignificar muitas coisas diante das diferenças. Somos desarticulados, porque ainda propagamos uma educação que nos afasta do outro.
Qual a grande lição do teatro para os que crescem aqui acreditando que a vida se restrinja ao serviço público?
Eu não sei se há uma grande lição do teatro, ou se essa lição se restringiria ao teatro. Talvez apenas algo que a vida me parece gritar a todo instante, o tanto que a escolha é a melhor escola. É isso que você deseja? Ser um servidor público ou você quer ser/estar o quê? Seja o que for, sabendo ou não sabendo, há de se ter muita pulsão e coragem para se fazer e ser quem se quer. Ouvi uma amiga dizendo que a vida é muito generosa com quem se lança nela. Talvez essa ;lição;, para mim, hoje, seja: voe. Seja de que forma for, voe! Mas aprenda a legitimar um voo que é apenas teu, não do Estado, não das expectativas de alguém.
Em crítica, eu já defini sua leitura de Plínio Marcos como ;pungente e visceral;. Hoje, o que é pungência? Sexo? Nudez? Ou a subversão talvez esteja em um corpo inteiramente coberto contando uma história singela?
A subversão está no tão legítima uma obra é para quem faz. O tão honesta com os desejos e éticas que o processo e os corpos acordaram. O tão funda ou rasa que ela se propõe a ir e vai. Assume-se. A maior subversão talvez seja sempre ser capaz de comunicar. E se comunicar é encontro. E encontro é escuta de sensibilidades. E o tão sensíveis que temos sido com o outro? Sexo, nudez, amor, solidão, tristeza, gana... Tudo se encontra. Tudo é cotidiano.
Pesa a responsabilidade de emprestar seu olhar para tantos artistas e provocações que lhe pedem intervenção?
Não pesa emprestar o olhar. Acho que olhar não se empresta, mas se dá. Um olhar é troca. O que pesa é o entendimento ético da troca. Às vezes, muito se quer e pouco se troca.
Atualmente, o trabalho de Jonathan pode ser conferido em três espetáculos, que estão em cartaz simultaneamente. Algo para poucos. Confira:
5 MINUTOS
Teatro Goldoni (EQS 208/209). Dias 30 de setembro, e 1; e 2 de outubro. 30/09 e 01/10, às 21h, e 02/10, às 20h. Ingressos: R$ 20,00 (inteira). Classificação indicativa: 14 anos.
POEIRA
Espaço Cena Brasília (CLN 205). Temporada até 2 de outubro. Sextas e sábados, às 21h; domingos, às 20h.Ingressos: R$ 20 (meia-entrada).Classificação indicativa: 16 anos.
ENTREPARTIDAS
Temporada no Rio de Janeiro. Dramaturgia de Jonathan Andrade.