Em um mundo cheio de injustiças, ninguém pode se dar o luxo de não ser feminista. A sentença proferida pela blogueira Lola Aronovich compõe o primeiro conjunto de textos do livro Você já é feminista! ; Abra este livro e descubra o porquê, em capítulo intitulado Bê-a-bá do feminismo. Organizado pela brasiliense Nana Queiroz, a publicação reúne 23 artigos e não se reduz a apresentar conceitos básicos do movimento que tem causado burburinho no país há alguns anos. Vai além. Fala também de formação de identidade, direito ao próprio corpo e cultura de equidade (que é diferente de igualdade porque, no último caso, seria preciso que partíssemos de lugares iguais, o que não acontece devido às centenas de anos de preconceito contra a mulher).
Quando se pensa que o debate sobre o feminismo pode ter saturado devido à intensa exposição midiática, ele se faz ainda mais necessário. Em setembro, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública constatou que mais de 30% dos brasileiros acredita que a mulher vítima de violência é, de alguma maneira, responsável pelos ataques sofridos. O dado alarma e preocupa. ;A pesquisa foi chocante porque fui eu quem iniciei o movimento Eu não mereço ser estuprada, quando o IPEA mostrou, há um tempo, que um em cada quatro brasileiros achava que a mulher merecia essa violência. Fico triste porque o trabalho de conscientização parece não ter surtido efeito;, lamenta a jornalista.
Apesar de os números estarrecerem, ela tenta enxergar o lado positivo desse tipo de levantamento. ;Quando você põe um assunto em pauta, há dois tipos de reações: as que estão dispostas a se transformar por esse tipo de realidade, e as que não querem. Essa última é uma reação forte, do tipo ;pessoal, vamos maldizer as feministas, isso é uma bobagem;. Isso pode ser um resultado da reação desses grupos conservadores que querem manter a sexualidade da mulher controlada, em geral por homens;, afirma, sonhando com o dia em que o livro Você já é feminista! ; Abra este livro e descubra o porquê se torne leitura obrigatória nas escolas.
Seria uma saída para que houvesse uma mudança estrutural na sociedade brasileira. ;Procuramos ao máximo que as autoras dos artigos fossem mulheres negras, acadêmicas, sem história acadêmica, prostitutas, travestis, mães, casadas, lésbicas, héteros, pobres, ricas. Essa diversidade de experiência precisava estar exposta no livro;, conta, sobre um feminismo que compreende que existe uma opressão que perpassa todas as mulheres ; mas que atinge em particular cada uma delas.
O crime silencioso
A mesma cultura do estupro que faz com que mulheres se sintam responsáveis pela violência que sofreram leva alguns parceiros a acreditar que são donos dos corpos das companheiras, podendo usá-los a bel-prazer. Depois de ser estuprada pelo namorado, em abril de 2015, a estudante de cinema carioca Marccela Moreno questionou como a sociedade via aquele tipo de crime. Diferentemente dos estupros que acontecem em lugares ermos e por desconhecidos, a violência em âmbito doméstico ;; aquela que parte do namorado, marido ou affair ;; não é tão abordada porque a própria vítima tem dificuldade em ter noção da situação em que está. Não são raras as vezes em que o agressor, em um terrorismo psicológico, faz com que ela não compreenda a dimensão dos ataques. Marccela, por exemplo, chegou a se questionar se não havia provocado o ex-parceiro. Com a ajuda das amigas, conseguiu compreender o problema por uma ótica mais abrangente.
;Quando contei para as minhas amigas, elas me disseram que isso também havia acontecido com elas. Foi quando decidi confrontar meu agressor, um cara acima de qualquer suspeita, morador da zona sul, praticante de ioga, de esquerda, pai de dois filhos, com guarda compartilhada... Mesmo fugindo dos padrões do que se imagina de uma pessoa violenta, ele não conseguiu lidar com o não. Eu disse que não queria transar e ele me falou: ;como assim.? Deixa de ser didática, Marccela;. Mesmo eu não querendo, transou comigo à força;, relembra.
Em O mais barulhento silêncio, Marccela ouviu dezenas de mulheres que passaram por drama parecido. O filme percorreu caminhos interessantes. Em vez de focar apenas em festivais e no circuito alternativo, está sendo exibido em escolas públicas do Rio de Janeiro. ;A maioria das meninas foi estuprada entre os 15 e os 18 anos, quando estavam tendo os primeiros contatos com a sexualidade;, comenta a cineasta. O objetivo é evitar que outras mulheres carreguem essas cicatrizes simbólicas, que deixam marca por muito tempo.
;Crescemos ouvindo que, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Temos quase uma doutrinação de que se você fala que foi estuprada é porque você faz sexo, e libertação sexual da mulher ainda não está muito resolvida. Eu mesma, quando fui estuprada, pensei ;uma hora isso ia acontecer, do jeito que eu sou...;. Essa liberdade da rua e do sexo ainda pertence ao homem, lamentavelmente. Quando a gente cruza essa linha, é meio como se assumíssemos o risco;, lamenta Marcela.
Você sabia?
Segundo o Ipea, 67% dos casos de violência entre as mulheres são cometidos por parentes próximos ou conhecidos das famílias; 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes e apenas 10% dos estupros são notificados.
Involução
Em 2014, a pesquisa Tolerância social à violência contra as mulheres, conduzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), constatou que ; da população concordava que mulheres que usam roupas que mostram o corpo mereciam ser estupradas. Este ano, o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com abordagem semelhante revelou o que ninguém esperava: mesmo com tamanho levante social contra a cultura machista que oprime o sexo feminino, esse número piorou: a cada 3 brasileiros, um continua pondo a culpa na vítima. Para isso, campanhas virtuais como a #EuNãoMereçoSerEstuprada, criada pela jornalista Nana Queiroz e com adesão de milhares de mulheres, como a atriz Grazi Massafera e as cantoras Pitty, Daniela Mercury e Valesca Popozuda, tornam-se elementos essenciais na construção de uma sociedade mais justa ;; e, principalmente, segura.
SERVIÇO
Você já é feminista! - Abra este livro e descubra o porquê, Editora Pólen Livros e Revista AzMinas, 176 páginas. Preço: R$ 35.
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Duas perguntas / Nana Queiroz
Por que algumas mulheres ainda resistem em se assumir feministas?
As mulheres ainda resistem por duas razões. A principal delas é porque existe uma intensa não compreensão do que é o feminismo. O pessoal que faz a propaganda contra é muito eficiente em proclamar uma imagem totalmente distorcida do movimento. Para começar, como a Lola fala no início do livro, feminismo não é sobre proibições, é sobre escolhas. Por exemplo: é proibido se depilar. Isso não existe. O que existe é: o seu corpo é seu, e você tem o direito de fazer o que você quiser. E como você tem esse direito, pode não fazer, se não quiser. A mesma questão sobre o aborto. Você não tem que ser a favor ou defender que alguém faça um. Há também um mea-culpa nosso, das feministas, que esse livro tenta desfazer, de que nós, por muito tempo, falamos de forma muito difícil. Estávamos tao deliciadas com nossos conhecimentos e com as nossas descobertas que não pensamos em simplificar o discurso para ele chegar a todo mundo. É preciso democratizar esse discurso, ele não pode ser acadêmico, difícil, impenetrável, tem que chegar a todas as mulheres. Na revista AzMina, acreditamos que a complexidade tem que estar nas ideias, e não na maneira como você as escreve. Assim, democratizamos verdadeiramente o feminismo, e acolhemos mais mulheres para o movimento.
Qual o papel da internet na revolução feminista?
Acho que foi a revolução mais importante que tivemos desde a capacidade de imprimir livros, quando se expandiu a capacidade das pessoas entenderem do que tratavam as discussões políticas. Agora, a internet é a outra grande revolução democrática, porque possibilita que outras pessoas tenham voz. O livro, antes, era horizontal, era alguém que sabia ensinando a alguém que não sabia. Na internet todo mundo sabe, ensina, aprende. Isso foi essencial para o feminismo porque as mulheres muitas vezes se sentiam intimidadas, achavam que algumas coisas que as incomodavam, como homens mexendo com elas nas ruas, era normal. Nós percebemos que outras mulheres também se incomodavam. Eu comecei a questionar: poxa vida, se elas também se incomodam é porque não é um elogio, mas uma marcação de poder, com homens com a ideia de que podem comentar como quiserem do nosso corpo, mesmo que isso cause medo e constrangimento. Foi a internet que nos fez entender a nós mesmas como coletivo, e que poderíamos transformar o mundo e a realidade.