A literatura e a música vieram embrulhadas no mesmo pacote ou na mesma cesta básica para o compositor paraibano Chico César. Ele morava na zona rural do município de Catolé do Rocha e, ao fazer a feira, o pai sempre trazia na bagagem um folheto de cordel ou folheto de uma canção, ao lado do arroz, do feijão, da mandioca ou de doces. Por isso, juntar poesia e canção sempre foi a coisa mais natural do mundo para ele. A prosa pede silêncio e concentração; a poesia clama pela voz alta, o compartilhamento e a praça pública.
Os lances caprichosos do destino fortaleceram os laços de Chico com a literatura e com a música. Quando tinha 8 anos de idade, ele passou a trabalhar na loja de discos e de livros Lunik na função de vendedor. Enquanto comercializava os produtos culturais, ouvia Chico Buarque, Jackson do Pandeiro, Rolling Stones, Luiz Gonzaga e Roberto Carlos. Mas também lia Menino de engenho, de José Lins do Rêgo, O menino do dedo verde, de Maurice Cruon, ou coletâneas de contos da Editora Ática.
No entanto, Chico confessa que as grandes influências em sua formação são as do poeta paraibano Zé Limeira e da geração da poesia marginal. É com esse filtro de surrealismo nordestino e de liberdade independente que ele se forjou e fez a própria leitura dos nomes canônicos do modernismo. Nesta entrevista, Chico fala de sua iniciação com a literatura, da relação com as palavras, do Prêmio Nobel a Bob Dylan e do que faria para seduzir as novas gerações para o prazer das letras se fosse professor na era virtual.
Como se deu a sua iniciação com a literatura e com a palavra?
Na verdade, começa em minha infância quando morava na zona rural, no interior da Paraíba. Quando ia fazer a feira, o meu pai trazia sempre um folheto de cordel ou o folheto de uma canção. A família sempre incentivou para que eu lesse cordel ou canção para todos. A literatura vinha associada aos bens de primeira necessidade, como o arroz, o feijão, a abóbora ou a goiabada.
E, na sequência, como se desenvolveu o gosto e cultivo da leitura?
A partir de 8 anos, comecei a trabalhar loja que vendia discos e livros. Antes, me relacionava de uma forma ingênua, mas, depois, a música e a literatura passaram a aparecer como bens de consumo. Além de vender, eu lia os livros. E, assim, conheci antologias de literatura publicadas pela editora Ática. Li José Lins do Rego, José de Alencar, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna. Obviamente, não entendia tudo, mas ajudou a construir em mim um horizonte de liberdade, a não aceitar as respostas imediatas, a acessar canais mais livres.
Que leituras te marcaram?
Desde O menino do dedo verde, de Maurice Druon, a O menino do engenho, de José Lins do Rêgo, eu era um menino, eu lia sobre mim. E mais: O auto da compadecida, de Ariano Suassuna, Doidinho, de José Lins do Rêgo, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. E, em certa fase da adolescência, confesso que li com bastante curiosidade o Relatório Hite, em um momento em que aflorava a sexualidade. Queria saber mais sobre o corpo das mulheres, sobre o útero e a vagina.
Desde o início, a palavra e a canção já vieram juntas em sua formação. Mas, ao se tornar compositor, como a literatura e a música se aliaram?
Foi algo muito natural, uma continuidade de ouvir os cantadores de feira, os cantadores de cordel. Eu ia à feira e a literatura era cantada. A palavra tinha um papel importante. A poesia está mais perto da canção do que da prosa. A poesia é algo para ser falado, interpretado e cantado; e a prosa é mais para ser lida. O ambiente que a prosa pede é mais de introspecção. A poesia pede mais alguém para ser compartilhada. Pede para ser dita em voz alta.
Além disso, o tropicalismo também influiu no gosto pela palavra poética na canção?
Sim, você tem ótimas letras de Caetano, de Torquato de Capinam. Mas, fora do tropicalismo, também havia Chico Buarque, Taiguara e Elomar. Depois deles, o movimento de retomada literatura marginal, com Cacáso e o Nicolas Behr estava mais perto do que eu poderia ser. Os tropicalistas tinham gravadora e toda uma estrutura, mas a literatura marginal questionava o sistema. Qualquer garoto do Piauí ou da Paraíba poderia se imaginar fazendo o próprio livro no mimeógrafo e distribuindo nas praças. E foi isso que fiz com os meus amigos em João Pessoa. Nós fomos para as ruas e os bares.
Ao ouvir algumas canções suas, a gente fica com a impressão de ressoar certo tom da poesia de Manuel Bandeira ou João Cabral de Melo Neto. Você confirma?
Eu acho que a influencia maior são de autores de música, tais como Torquato Neto e Capinan. Tive mais influência da geração do mimeográfico, que olhou para os grandes autores modernista com uma reverência iconoclasta. Isso ajudou muito a minha geração, a Arnaldo Antunes e outros poetas a escrever as nossas letras. No meu caso particular, a maior influencia é, na verdade, de Zé limeira|, o poeta do absurdo, com cordel surreal. A postura dele influenciou muito a mim, ao Chico Science, ao Otto e outros que beberam na fonte do surrealismo nordestino. E, claro que tem João Cabral, Manuel Bandeira e Guimarães Rosa, mas entrando como ingredientes desse caldeirão nordestino.
Você foi jornalista cultural durante algum tempo em João Pessoa. Lidou com o livro nesta função?
Eu não era especificamente jornalista cultural, fazia polícia, futebol ou cidades. Fazia um pouco de tudo. Depois que me mudei para São Paulo, atuei como preparador de texto. Mas não me aprofundei em jornalismo cultural. Para mim, o jornalismo era mais uma forma de sobrevivência, já tinha traçado a opção pela música.
Você ainda é um grande leitor? Que livros leu mais recentemente?
Eu sempre leio quando me sobra tempo. Acabei de ler um livro sobre a história da escravidão a partir do ponto de vista dos escravos, escrito pela Ana Maria Gonçalves. É maravilhoso. No momento, estou lendo um livro de Mia Couto sobrea histoira da escaravidão no Brasil do ponto de vista dos escravos, Ana Maria Gonçalves. Estou lendo Mia Couto sobre as guerras.
Se você fosse um professor como iniciaria as crianças e os adolescentes na literatura em um mundo conectado por meios virtuais de comunicação?
É um caminho, tem apelo ao que conhecmos como litetraura, o que conhecmos com alfabeto. Se quisermos falar com as novas gerações, temos falar também com a tecnologia, os computadores, os celulares, o que eles fazem, o que eles falam. Eu tentaria fazer pontes desses meios com a literatura gutembergiana. Sem entrar nesse ambiente virtual, fica difícil o diálogo com as novas gerações. Não adianta colocar em guerra dois mundos que são um só: o da comunicação.
Como avalia a escolha recente de Bob Dylan na condição de Prêmio Nobel de Literatura? Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector mereceriam ter ganhado também o Nobel de literatura?
É engraçado, parece que o Bob Dylan não se tocou com o Prêmio Nobel. Esse prêmio foi bom para chamar a atenção para um tipo de literatura que foi ganhando força a partir dos anos 1950, que é a letra de música. A poesia está mais perto da canção do que da prosa. Quanto à segunda parte da pergunta, não sei se os brasileiros devem ficar preocupados com o Prêmio Nobel. Temos de ver a nossa literatura, temos de ler mais, nos apropriarmos dessa riqueza e usá-la para alfabetizar e humanizar nosso povo. E deixar que as coisas aconteçam. Isso tem importância para nós. E aí, talvez o mundo enxergue e confira alguma láurea. Não acho que devamos nos preocupar com isso de prêmios.
A descoberta do mundo
Amanhã, às 14h, na Arena Infantil Monteiro Lobato, Chico César autografa na Bienal Brasil do Livro e da Leitura o livro infantil O agente laranja e a maçã do amor, inspirado na Festa das Neves, folguedo popular tradicional de João Pessoa. Na narrativa, ele apresenta as aventuras do Agente Laranja, fiscal de frutas na Festa das Neves, que se diverte a cada movimento. As ilustrações são de Fernanda Lerner.