A Oficina Francisco Brennand, no Bairro da Várzea, se ergue, imponente, como um portal para o mítico nas bordas da cidade do Recife, vizinhA a um braço do Capibaribe tomado pelo verde. Seu dono e senhor, o artista plástico Francisco Brennand, de 89 anos, A guarda desde 1971 com o empenho que o próprio nome do local já deixa entrever. A etimologia da palavra oficina diz respeito ao ;lugar de trabalho;, ;lugar do fazer;, algo que ele aplica todos os dias à sua arte, seja na pintura ou seja na cerâmica.
Desta vez, no entanto, não é o seu talento pictórico que chama a atenção, mas o lançamento de seus diários, reunindo trechos comentados de sua vida e pensatas sobre variados temas, principalmente os artísticos. Os quatro volumes são divididos por datas e serão apresentados ao público pela primeira vez em evento para convidados na própria oficina. A erudição de Brennand e sua inclinação para a escrita são conhecidas por quem acompanha sua obra e, por isso, a publicação dos volumes é cercada pela expectativa de se aprofundar no pensamento do artista. Quem se aventurou a pesquisar e organizar décadas de manuscritos foi uma de suas sobrinhas-netas, Marianna Brennand Fortes, que também realizou um curta e um longa-metragem sobre o parente ilustre.
Para a empreitada, ela abriu uma editora, a Inquietude, que viabilizou a publicação de 2 mil exemplares da obra, com cerca de 2 mil páginas no total. Foi a forma encontrada para ter liberdade na hora de editar o material. ;Foi um trabalho muito intenso desde quando o li pela primeira vez, e decidi que contaria a história dele por meio dos escritos. Meu filme traz isso. É um diário de um artista e de um homem que reflete sobre si mesmo. Quem escreve é um apaixonado por literatura, artes plásticas, cinema. Respeitei totalmente o que ele produziu. Só organizei e criei uma diagramação feita para facilitar a leitura;.
Como você se sente sendo objeto de atenção pública, especialmente com a proximidade de lançamento de seus diários?
Eu me habituei a receber pessoas aqui na Oficina. As pessoas costumam dizer que sou recluso, mas não sou, absolutamente. Eu apenas não apareço no mundo social do Recife, mas em Paris era a mesma coisa. Eu passava a maior parte do tempo no meu ateliê, trabalhando. Saía para ir aos museus. Vivo aqui dentro desta propriedade desde que nasci. Sou rodeado de visitantes, que me obrigam a conversar e a conviver. No entanto, é lastimável que as conversas estejam diminuindo consideravelmente. Noto que alguns visitantes me fazem perguntas a respeito do conjunto de obras da Oficina, mas curiosamente, se você se alonga, eles recuam, ficam amedrontados e vão embora sem nenhuma cerimônia. Devem pensar que sou louco. Não é normal que uma pessoa fale mais de dois minutos a respeito de um determinado assunto, e como eles me pedem opiniões, ocorre um processo de emulação. A fala pode se desencadear a despeito de você, por mexer com mecanismos ancestrais de comunicação.
Você considera que há muitas percepções equivocadas a respeito de sua obra e de sua trajetória?
Não lembro se foi o escritor alemão Rainer Maria Rilke quem disse que a fama de uma pessoa é muito mais um conjunto de desentendimentos a respeito de uma pessoa do que de entendimentos. Você é famoso porque as pessoas atribuem defeitos que você não tem. O fato de não me movimentar muito me deu tempo de fazer outras coisas, como exercer a minha profissão, que exige um trabalho repetido, diário e sem trégua. Estou aqui comemorando 45 anos de trabalho dentro desta velha fábrica, que estava em ruínas, foi reformada por mim e poderia ser, inclusive, um local muito mais difundido do que já é. É um lugar eleito por cada uma das pessoas que vêm aqui. Ele já não me pertence.
Você está lançando quatro volumes de seus diários, cuja publicação era aguardada por anos por quem acompanha sua trajetória. Por que isso acontece neste momento específico?
Se eu não fizesse agora, seria um diário póstumo [risos]. Em todo caso, há uma quantidade enorme de diarios publicados postumamente. Tive a sorte de a minha sobrinha-neta, Mariana Brennand, se interessar pela publicação desses diários com uma enorme força de vontade. Ela se empenhou por cinco anos e foi bem-sucedida depois de muito trabalho. Não é fácil encontrar os patrocinadores e os volumes foram publicados na Companhia Editora de Pernambuco em uma edição caprichada.
A determinação com a qual você escreve demonstra seu apreço pela palavra. Há coisas que somente elas conseguem expressar?
Evidentemente, a escrita é bem mais artificial do que a fala. Você tem a obrigação, quando escreve, de utilizar muitas vezes dez ou 15 palavras à procura de uma síntese perfeita. Os escritores, mesmo depois de várias edições de seus livros, voltam a corrigi-los, a fazer revisões. Eu acho que nada está perfeito ou terminado. [O pintor francês] Cézanne dizia que não existiam quadros terminados, mas abandonados. Esses são dois temas que serviriam como material para um romance: um pintor que, inadvertidamente, pinta um mesmo quadro a vida inteira sem perceber, e só depois de morto as pessoas vêm descobrir que todas as telas dele eram absolutamente iguais. Outro tema já foi explorado por Balzac: a luta para encontrar a pureza da forma, e sem perceber ele está destruindo a obra, em vez de aprimorá-la. Este é o drama de todo artista. Ele nunca deixa de olhar o que os outros fazem ou já fizeram. É como se fosse um quadro só, pintado desde as cavernas.
No último volume de seus diários, há referências a um certo Mestre Brennand. Quem é esse personagem?
Depois de uma certa idade, é comum os artistas serem chamados de mestres. Mestre Brennand, Mestre Abelardo da Hora; É uma maneira de você dar um tratamento respeitoso a um artista que, às vezes, você nem respeita. Neste volume, já não sou eu quem fala, é um personagem, Nonato, ou Renato. Ele me trata como Mestre Brennand e o quarto volume não tem mais nada a ver com o diário. É uma história. Poderia ter dito que é muito mal alinhavada, pois não sou romancista. Escrevi desta forma porque tinha alguns acertos de contas a fazer e temas que gostaria de esclarecer.
Quais acertos de contas?
Há tantas interpretações cavilosas a respeito da minha obra, como, por exemplo, dizer que ela é obscena ou afirmar que a escultura do Marco Zero tem uma forma fálica. Se eu fizer um poste, um obelisco, uma chaminé, a intenção é fazer um gigantesco falo? Por que aquilo tem que ser um falo? Me convidaram para participar de uma homenagem aos 500 anos do Descobrimento do Brasil e quis que a forma vegetal fosse representada em sua imponente verticalidade. As pessoas esqueceram que os conquistadores saíram das grandes cidades, feitas em linha reta, e descobriram as grandes florestas, cheias de curvas. A mata atlântica era vigorosa e chegava até a beira da praia.
Desde a criação da Oficina Francisco Brennand, em 1971, este lugar foi transfigurado por você. No que esse local transformou sua obra?
Eu nasci aqui. Esse lugar foi erigido não só por mim, mas por alguns familiares que, tanto quanto eu, o elegeram como centro do mundo. O centro do mundo é o centro do nosso espírito. Estou aqui há 45 anos, quase meio século, mais tempo do que meu pai, que ficou aqui por 38 anos e deixou a olaria para fazer porcelanas. Além de tudo, descobri muito cedo que o bairro da Várzea está ligado à história da Restauração Pernambucana. Expulsamos os holandeses e foi a partir daí que o Brasil começou a ter um endereço certo. Essa região é um solo sagrado. Wittgenstein dizia que a arquitetura glorifica, logo, só pode haver arquitetura onde há algo a glorificar. Então, existe algo que justifica esse templo, essa cidadela, esse sítio com uma mitologia própria, como um local de reflexão para as novas gerações.
Qual o destino deste lugar?
Ele vai ficar para a cidade do Recife. É fruto de um trabalho árduo, desde a época de meu pai e de todos os operários que trabalharam aqui, desde quando era uma empresa que fabricava telhas e tijolos. Meu pai contratou Abelardo da Hora, que trabalhou dois anos fazendo jarras, pratos. Meu pai era encantado com isso. Acredito que as peças criadas aqui são sacralizadas nas suas próprias intenções. O sagrado não está ligado apenas ao cristianismo. O símbolo que preside a Oficina é o de Oxóssi. Eu, como brasileiro, estou perfeitamente integrado ao sincretismo religioso. Eu sou católico à minha maneira, e essa percepção inclui Oxóssi. Não sou candomblecista, mas o incluo como um dos meus protetores, por quem eu nutro uma grande devoção. Acho a história dele gloriosa.
TRECHOS DOS DIÁRIOS
23 DE FEVEREIRO DE 1949 ; volume 1, página 61 ;Logo na primeira semana de minha chegada, carregado por Cícero Dias, pude apreciar sem nenhum impedimento uma belíssima exposição de Picasso (cerâmicas realizadas em Vallauris entre os anos de 1946 e 1949) na Maison de La Pensée Français, a qual causou-me uma profunda impressão, fazendo-me de imediato rever enorme lista de preconceitos alimentados abertamente contra essa forma de arte, apesar de no Recife toda a minha família ser tradicionalmente dedicada à indústria de cerâmica.;
14 DE JANEIRO DE 1983 ; volume 2, página 117 ;Não estou de forma alguma equivocado quando obscureço os significados do meu trabalho. Um depoimento de Federico Fellini ; divulgado há uns dois anos ; confirma os meus propósitos. Falando sobre A cidade das mulheres (1980), o diretor insiste sobre a obscuridade, a relação com a parte negra, com a parte desconhecida, com a noite e com a água; qualquer tentativa de explicação racional só pode privá-lo do seu aspecto enigmático do seu lado de esfinge, que é o que ele tem de mais verdadeiro.; ;(...) ele tende a ser evasivo, impalpável, com todo esse mistério em torno dele que é próprio do feminino, da mulher.;