Diversão e Arte

Ao Correio, Matheus Nachtergaele fala sobre cinema, gênero e tevê

Na série inédita, o ator analisa momentos memoráveis do cinema brasileiro

Rebeca Oliveira
postado em 04/12/2016 07:42
Na série inédita, o ator analisa momentos memoráveis do cinema brasileiro
"Uma grande cena é capaz de perdurar na nossa memória;, acredita Matheus Nachtergaele. Debruçado sobre aquelas que ficam, para sempre, imprevisíveis, inevitáveis e emocionantes, o ator estreou, em meados de novembro, o programa Grandes cenas, série inédita na qual analisa momentos memoráveis do cinema brasileiro (e latino-americano) casado com depoimentos de personagens diretamente envolvidos com a produção ; seja diretor, montador ou ator.

Com direção de Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, a atração é exibida no canal Curta, às quartas, às 23h45. Foram gravados 22 episódios, que remontam a sequências inesquecíveis de realizadores como Ruy Guerra e Lais Bodanzky. O episódio de estreia, exibido em 16 de novembro, por sorte do acaso, acabou virando uma homenagem ao argentino Hector Babenco, cineasta morto em julho depois de sofrer um ataque cardíaco. A cena escolhida foi batizada de A regressão, do longa Pixote, a lei do mais fraco, quando a saudosa atriz Marília Pêra amamenta o menino de rua interpretado por Fernando Ramos da Silva.

;Quando acontece o milagre da arte, em geral, chega-se próximo a uma oração, mesmo no cinema, em que os artistas não estão mais presentes (na edição);, acredita. ;Nosso cinema é lindo, inclusive nas fases mais cruéis, é diferenciado, corajoso, multicolorido, mameluco;, destaca. A ideia é enobrecer as produções tupiniquins, demonstrando que ;o cinema brasileiro e latino é tão maravilhoso quanto o de outros lugares do mundo;, define Nachtergaele, que, até 2 de janeiro, personifica a própria mãe na videoinstalação Monólogos de gênero, novo trabalho da artista visual holandesa Diana Blok, exibido na galeria 4 do CCBB Brasília. Abaixo, o ator comenta sobre a relação com a sétima arte, discute preconceito e alfineta o movimento retrógrado de repressão sexual.

Do que é feita uma grande cena?
De uma conjunção de fatores. Uma grande cena nunca é feita de um fato só. Às vezes, de uma interpretação brilhante que chama atenção... Mas o cinema é realizado em equipe e isso não seria possível se todos os outros materiais artísticos não tivessem a favor disso. Uma grande cena sempre dependerá de um grande todo. Em alguns casos, um elemento prepondera sobre outros. Isso só acontece nessa comunhão que é o cinema, em que as artes se encontram.

Quem são os grandes atores e diretores do nosso cinema atual?
Tenho muito receio em dar nomes, porque muitos poetas ficarão de fora, mas com certeza, neste momento, Cláudio Assis, Walter Carvalho, Lucrecia Martel, Ruy Guerra, Walter Lima Jr., Paulo José, Grande Otelo, Paulo César Pereio, Jorge e Laís Bodansky, Júlio Bressane... São exemplos de grandes artistas que atuam e atuaram no cinema, de forma definitiva.

Como avalia sua contribuição nesse panorama?
Desde o início, sempre escolhi meus projetos muito menos por dinheiro ou protagonismo, e mais pela vocação de cada projeto, independentemente do veículo. Fiz tevê, teatro e cinema com muita intensidade nesses 20 anos de trabalho. Posso me considerar um ator de cinema, em que me coloquei com muita alegria, acreditando nele como peça de liberdade. Mas também fiz tevê muito atento à vocação de cada trabalho, nunca como um funcionário de emissora X ou Y.

Como artista, se sente no dever valorizar a cultura nacional, tão sujeita a influências estrangeiras?
Meu papel é fazer rir ou chorar com a consciência de que estamos em um país em formação. Eu olho meu trabalho e percebo que ao menos isso eu consegui seguir. Você vê um retrato do povo brasileiro. No teatro, como agora, com a peça baseada em poemas da minha mãe suicida, que não deixa de ser uma tragédia. No cinema, uma tentativa grande de explorar a multiplicidade de fatos do homem simples do Brasil. Na tevê, talvez, em um viés mais cômico, mas seguindo a mesma linha. São tentativas, de uma maneira pop, de encarar com honestidade a brasilidade. Eu sou um fã do cinema e da tevê brasileira, do que eles têm de mais bonito, e sou um inimigo ferrenho da norte-americanização do nosso audiovisual, você não vai me ver em nada que se pareça muito com série norte-americana. Os próprios criadores não me convidam para projetos com esse perfil.

Por quê?
Todo material de que precisamos já está entre nós. Nossos exemplos de dramaturgia estão em Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna, Plínio Marcos, Machado de Assis. Claro, a gente aprende com os mestres do mundo inteiro, como Woody Allen. Tenho americanos na lista de artistas preferidos, mas sei que temos materiais suficientes aqui para caminhar com as próprias pernas. De uns seis anos para cá, voltamos a duvidar de nós mesmos. Estávamos em uma vibe bonita na retomada do cinema, nos primeiros mandatos do PT, estávamos gostando de ser Brasil, e entramos em uma desconfiança de novo em relação a nossa capacidade e identidade, e me parece ruim. Paulo José quem disse, e eu concordo: quem faz o melhor cinema brasileiro é o Brasil. Quem faz o melhor cinema americano, é a América. A gente não faz. Fica meio troncho.

Você tem papeis memoráveis no teatro e tevê, como a estreia na minissérie Hilda Furacão (1998), como o homossexual Cintura Fina, quando ainda nem se debatiam questões de gênero. Em breve, fará mais um personagem gay e está em instalação artística com a mesma temática. O que essa discussão representa para a sua carreira?
Tive alguns personagens homossexuais. O Cintura Fina foi uma experiência, um risco, e para nossa surpresa teve uma aceitação bonita por parte do público, quase que geral. Lembro-me de dizerem que os adolescentes estavam muito fissurados pelo papel, não pela sexualidade, mas pela atitude de ser quem ele quer ser. Depois, teve o Dunga, em Amarelo manga (Cláudio Assis), que na minha opinião é um dos filmes de maior brasilidade que a gente tem, um filme que se baseia nos nossos antepassados dramatúrgicos. Os personagens estão lá: a puta que na verdade é santa, a santa que na verdade é puta, o ;viadinho; do cortiço (muito presente em Plínio, no Nelson...).

A aceitação pareceu maior do que é hoje?
Do ponto de vista da aceitação, me parece que foi mais fácil há 15 anos do que agora. Sinto mais reação agora do que eu sentia na época do Cintura Fina. A bancada evangélica está comprando muitos políticos e ganhando muitas cabeças. A sexualidade não era mais para ser assunto. O personagem era pessoal, nunca encarei personagem pela sexualidade deles. Ela é uma das coisas a se reparar, é como o sotaque, a classe social, são características individuais. Não deveria mais ser assunto. Isso já foi.

Cansou-se desse pensamento retrógrado?
Estou meio cansado desse assunto. Não vejo por que falar disso, não estamos em uma cruza para procriar, nosso afeto é criativo e se dá de muitas maneiras. Sexo é afeto, o único problema é a falta de amor, não só no sexo, também na arte. É ela que mata: as séries, o cinema, o próximo, qualquer relação. Mas se é mulher com mulher, comida ou tragédia, não faz diferença.

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