Política e quadrinhos combinam. Pode até parecer que sejam assuntos muito distantes, mas o fato é que a temática aparece nas HQs desde que os primeiros super-heróis apareceram nos gibis. Foi isso e a forte metáfora política presente em Guerra civil, da Marvel, que motivaram o pesquisador e mestre em história pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) Victor Callari a estudar o tema.
Callari pesquisou como a política americana foi retratada na série de HQs Guerra civil, publicada pela Marvel. O estudo gerou um livro. Publicado pela editora Criativo, Guerra civil ; Super heróis: Terrorismo e contraterrorismo nas HQs da Marvel apresenta os resultados do trabalho do pesquisador.
Para Callari, a política, de fato, sempre foi tema dos quadrinhos e em Guerra civil aparece de maneira muito forte. ;A trama toda é construída como uma espécie de metáfora para as questões políticas que aconteceram nos EUA depois do 11 de setembro;, aponta.
Na narrativa, um incidente envolvendo a luta entre vilões e super-heróis em uma área urbana provoca a destruição de uma escola repleta de crianças. A partir daí, passa a existir comoção pública para que o governo legisle sobre a questão dos super-heróis, que se dividem entre os que apoiam a iniciativa e os que a reprovam.
Callari explica que a trama é justamente uma representação do momento vivido pelos americanos no governo Bush, logo após o 11 de setembro de 2001. "O governo do Bush criou uma série de medidas que ficaram basicamente conhecidas como Ato Patriótico. Criou agências de segurança nacional que passam a monitorar conversas telefônicas, trocas de e-mail, mapear possíveis terroristas. Por isso, a partir de 2002, os cidadãos passaram a vivenciar uma perda de liberdades individuais;, explica.
Tudo isso, segundo Callari, gerou uma divisão interna no país. De um lado quem acreditava que as medidas eram importantes e necessárias e, por outro, quem se opunha às ações do governo. ;Então, a Marvel pegou o universo dos super-heróis para representar essa divisão interna dos EUA;, comenta.
Time Stark x Time Capitão
Em Guerra civil, os dois grupos são liderados por dois dos principais super-heróis: a favor do governo, Homem de Ferro; e Capitão América, contra às medidas. O principal objetivo da pesquisa de Callari foi tentar identificar de que lado a Marvel se colocava nessa divisão.
Para o pesquisador, com Guerra civil, a editora promoveu uma tomada de posição na questão política americana e tentou, de certa maneira, influenciar também a opinião pública. ;O leitor de quadrinhos é majoritariamente adolescente, no processo de construção da sua formação política. Essa interferência da editora vai aparecer na escolha que a Marvel faz ao construir um slogan para toda a série. Toda propaganda vinha acompanhada de uma pergunta: ;De que lado você está?;. O leitor não poderia ficar isento, precisava estar do lado de um ou de outro;, explica.
Já a posição da editora, segundo Callari, fica a evidente com a desconstrução da figura do Homem de Ferro. ;Na história, ele se alia aos principais vilões e aparece sempre repleto de dúvidas. Já os rebeldes liderados pelo Capitão têm a convicção de que estão do lado correto. O Capitão é retratado como um personagem moralmente superior ao Homem de Ferro.;
Na mídia
A imprensa, explica o pesquisador, tem uma posição essencial na representação política nas HQs. ;A imprensa tem um papel interessantíssimo desde o início dos quadrinhos. Basta lembrar de Clark Kent, que era repórter. Existe uma tradição de relacionar a atuação da mídia aos quadrinhos.;
O uso que Frank Miller fez da imprensa, na década de 1960, em Batman ; Cavaleiro das trevas foi fundamental para a maneira como os quadrinhos atuais utilizam os jornais em suas histórias. ;Ele passou a utilizá-los como uma forma de dar visibilidade àqueles acontecimentos, o leitor tinha noção da dimensão do fato a partir da repercussão que os jornais davam.;
Em Guerra civil, a imprensa vai repercutindo constantemente os dois lados e há uma série de histórias focada na ação de dois repórteres. ;Existe um arco de histórias especial chamado Frontline em que dois repórteres são personagens principais e eles passam a investigar a lei de registros e vão dar a dimensão da política no assunto. Talvez seja tão importante quanto o arco principal;, conta.
Guerra civil ; Super heróis: Terrorismo e contraterrorismo nas HQs da Marvel
Victor Callari. Editora Criativo. 272 páginas. R$ 39,90.
Três perguntas // Victor Callari
Como essa dimensão políticas dos quadrinhos aparece nas adaptações para o cinema?
No cinema, existe essa dimensão política, mas ela é muito mais simplória, muito mais rasa do que aquilo que está na HQ. Mas a dimensão existe. Em um dos primeiros filmes, por exemplo, o Capitão América tem um momento de nostalgia falando sobre a Segunda Guerra e a fala final dele é fundamental para entender essa relação. ;Vocês me contam tudo aquilo que ganhamos, mas ninguém me mostra o que perdemos.; O pós-Segunda Guerra é o momento que os EUA se transformam na maior nação do planeta. Mas passa a existir também uma contradição com uma série de valores, ideais iluministas, que vão sendo modificados no decorrer do século 20 até chegar em Trump.
Política e quadrinhos se relacionam desde sempre?
A política ou temas de ordem social aparecem desde o surgimento das histórias em quadrinhos no final do século 19. Os super-heróis surgem na metade da década de 1930 e a era de ouro acontece durante a Segunda Guerra. A capa da primeira revista do Capitão América é ele dando um soco no Hitler. Então, existe uma relação íntima desde sempre, que perpassou praticamente todo o século 19.
A Guerra Fria também foi um momento importante dessa relação, certo?
Sim, a Guerra Fria serviu de mote em vários momentos. Tanto a corrida armamentista quanto a espacial foram usadas para criar alguns dos personagens mais famosos. O Quarteto Fantástico, por exemplo, ganha os poderes quando eles estão viajando para o espaço e o Hulk que se torna quem é a partir dos raios gama.