Diversão e Arte

Livro desvenda a relação entre política e HQs

Série 'Guerra civil', da Marvel, mostra a vocação das HQs, desde o início, para tratar do tema e gera pesquisa acadêmica sobre o assunto

Alexandre de Paula
postado em 13/12/2016 07:20

Pesquisa mostra que Guerra civil representa a divisão existente na sociedade americana depois do 11 de setembro

Política e quadrinhos combinam. Pode até parecer que sejam assuntos muito distantes, mas o fato é que a temática aparece nas HQs desde que os primeiros super-heróis apareceram nos gibis. Foi isso e a forte metáfora política presente em Guerra civil, da Marvel, que motivaram o pesquisador e mestre em história pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) Victor Callari a estudar o tema.

Callari pesquisou como a política americana foi retratada na série de HQs Guerra civil, publicada pela Marvel. O estudo gerou um livro. Publicado pela editora Criativo, Guerra civil ; Super heróis: Terrorismo e contraterrorismo nas HQs da Marvel apresenta os resultados do trabalho do pesquisador.

Para Callari, a política, de fato, sempre foi tema dos quadrinhos e em Guerra civil aparece de maneira muito forte. ;A trama toda é construída como uma espécie de metáfora para as questões políticas que aconteceram nos EUA depois do 11 de setembro;, aponta.

Na narrativa, um incidente envolvendo a luta entre vilões e super-heróis em uma área urbana provoca a destruição de uma escola repleta de crianças. A partir daí, passa a existir comoção pública para que o governo legisle sobre a questão dos super-heróis, que se dividem entre os que apoiam a iniciativa e os que a reprovam.

Callari explica que a trama é justamente uma representação do momento vivido pelos americanos no governo Bush, logo após o 11 de setembro de 2001. "O governo do Bush criou uma série de medidas que ficaram basicamente conhecidas como Ato Patriótico. Criou agências de segurança nacional que passam a monitorar conversas telefônicas, trocas de e-mail, mapear possíveis terroristas. Por isso, a partir de 2002, os cidadãos passaram a vivenciar uma perda de liberdades individuais;, explica.

Nas adaptações para o cinema, a relação com política ganha tons mais rasos do que nas HQs Tudo isso, segundo Callari, gerou uma divisão interna no país. De um lado quem acreditava que as medidas eram importantes e necessárias e, por outro, quem se opunha às ações do governo. ;Então, a Marvel pegou o universo dos super-heróis para representar essa divisão interna dos EUA;, comenta.

Time Stark x Time Capitão


Em Guerra civil, os dois grupos são liderados por dois dos principais super-heróis: a favor do governo, Homem de Ferro; e Capitão América, contra às medidas. O principal objetivo da pesquisa de Callari foi tentar identificar de que lado a Marvel se colocava nessa divisão.

Capitão América e Homem de Ferro são usados pela Marvel como líderes da divisãoPara o pesquisador, com Guerra civil, a editora promoveu uma tomada de posição na questão política americana e tentou, de certa maneira, influenciar também a opinião pública. ;O leitor de quadrinhos é majoritariamente adolescente, no processo de construção da sua formação política. Essa interferência da editora vai aparecer na escolha que a Marvel faz ao construir um slogan para toda a série. Toda propaganda vinha acompanhada de uma pergunta: ;De que lado você está?;. O leitor não poderia ficar isento, precisava estar do lado de um ou de outro;, explica.

Já a posição da editora, segundo Callari, fica a evidente com a desconstrução da figura do Homem de Ferro. ;Na história, ele se alia aos principais vilões e aparece sempre repleto de dúvidas. Já os rebeldes liderados pelo Capitão têm a convicção de que estão do lado correto. O Capitão é retratado como um personagem moralmente superior ao Homem de Ferro.;

Na mídia

A imprensa, explica o pesquisador, tem uma posição essencial na representação política nas HQs. ;A imprensa tem um papel interessantíssimo desde o início dos quadrinhos. Basta lembrar de Clark Kent, que era repórter. Existe uma tradição de relacionar a atuação da mídia aos quadrinhos.;

A imprensa tem papel importante em Guerra civil ao representar e repercutir os dois ladosO uso que Frank Miller fez da imprensa, na década de 1960, em Batman ; Cavaleiro das trevas foi fundamental para a maneira como os quadrinhos atuais utilizam os jornais em suas histórias. ;Ele passou a utilizá-los como uma forma de dar visibilidade àqueles acontecimentos, o leitor tinha noção da dimensão do fato a partir da repercussão que os jornais davam.;

Em Guerra civil, a imprensa vai repercutindo constantemente os dois lados e há uma série de histórias focada na ação de dois repórteres. ;Existe um arco de histórias especial chamado Frontline em que dois repórteres são personagens principais e eles passam a investigar a lei de registros e vão dar a dimensão da política no assunto. Talvez seja tão importante quanto o arco principal;, conta.

Guerra civil ; Super heróis: Terrorismo e contraterrorismo nas HQs da Marvel
Victor Callari. Editora Criativo. 272 páginas. R$ 39,90.

Três perguntas // Victor Callari

Como essa dimensão políticas dos quadrinhos aparece nas adaptações para o cinema?
No cinema, existe essa dimensão política, mas ela é muito mais simplória, muito mais rasa do que aquilo que está na HQ. Mas a dimensão existe. Em um dos primeiros filmes, por exemplo, o Capitão América tem um momento de nostalgia falando sobre a Segunda Guerra e a fala final dele é fundamental para entender essa relação. ;Vocês me contam tudo aquilo que ganhamos, mas ninguém me mostra o que perdemos.; O pós-Segunda Guerra é o momento que os EUA se transformam na maior nação do planeta. Mas passa a existir também uma contradição com uma série de valores, ideais iluministas, que vão sendo modificados no decorrer do século 20 até chegar em Trump.

Política e quadrinhos se relacionam desde sempre?
A política ou temas de ordem social aparecem desde o surgimento das histórias em quadrinhos no final do século 19. Os super-heróis surgem na metade da década de 1930 e a era de ouro acontece durante a Segunda Guerra. A capa da primeira revista do Capitão América é ele dando um soco no Hitler. Então, existe uma relação íntima desde sempre, que perpassou praticamente todo o século 19.

A Guerra Fria também foi um momento importante dessa relação, certo?
Sim, a Guerra Fria serviu de mote em vários momentos. Tanto a corrida armamentista quanto a espacial foram usadas para criar alguns dos personagens mais famosos. O Quarteto Fantástico, por exemplo, ganha os poderes quando eles estão viajando para o espaço e o Hulk que se torna quem é a partir dos raios gama.



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