Diversão e Arte

Machado de Assis mostra mira certeira ao comentar outras obras

As 16 crônicas de O futuro mostram a agudeza crítica do autor

Severino Francisco
postado em 17/12/2016 07:33

Machado de Assis: comentários com a pena da galhofa e a tinta do ceticismo

Com a pena da galhofa e a tinta do ceticismo, Machado de Assis vislumbrou a passagem da monarquia rumo a república como uma mera troca de tabuletas, que mantinham todos os seculares privilégios. O ceticismo diante de soluções simplórias e panaceias não impediu, no entanto, que ele tomasse partido em face dos grandes acontecimentos do seu tempo.

Se em muitos momentos, foi oblíquo e dissimulado, Machado se alinhou com os liberais e desfechou ácidas críticas contra os conservadores ao assinar a coluna Comentários da semana, no Diário do Rio de Janeiro. O Diário era um dos mais importantes propagadores da causa liberal na então capital do país.

Todavia, a ascensão do gabinete chefiado pelo Marquês de Olinda, em 30 de maio de 1862, provocaria uma reviravolta e mudaria as tabuletas da política. O Marquês articulou uma composição entre conservadores e liberais que calou as vozes mais críticas e independentes. Nestas circunstâncias, as colaborações de Machado deixaram de ser benvindas e a pena do cronista ;foi parar no fundo da gaveta;, como ele mesmo escreveu.

Mas não por muito tempo. Em setembro de 1862, Machado voltaria a assinar uma coluna de crônicas na revista literária O futuro, de periodicidade quinzenal, criada pelo português Faustino Xavier de Novaes, no Rio de Janeiro. As crônicas só foram publicadas uma única vez em uma das edições das obras completas de Machado de Assis. Elas voltam a circular em edição organizada pelo pesquisador Rodrigo Camargo de Godoi, da Unicamp, sob o título O futuro (Ed. Boitempo/Unicamp).

Logo na primeira crônica, Machado concebe um engenhoso diálogo entre o cronista e sua pena e lhe dirige conselhos para que ela não se meta em polêmicas literárias, políticas ou de quaisquer outros gêneros: ;O pugilato das ideias é muito pior que o das ruas; tu és franzina, retrai-te na luta e fecha-te no círculo dos teus deveres, quando couber a tua vez de escrever crônica. Sê entusiasta para o gênio, cordial para o talento, desdenhosa para a nulidade, justiceira sempre, tudo isso com aqueles meias-tintas necessárias aos melhores efeitos da pintura. E assim viverás honrada e feliz;.

Poesia
Felizmente, a pena rebelde de Machado não o obedece e se envolve em inúmeras polêmicas, armada de fino espírito crítico. Embora de maneira despretensiosa e galhofeira, o que reponta nestas páginas é o intelectual de alta categoria empenhado no desenvolvimento do teatro, da ficção e da poesia: ;O que é certo, porém, é que em nosso país e neste tempo é cousa rara para admirar um livro de versos, e, sobretudo, um livro de bons versos, porque maus, sempre há quem os escreva, e se encarregue, em nome de outras nove musas, que não moram no Parnaso, mas algures, de aborrecer a gente séria e civilizada;, escreve Machado ao comentar o livro Revelações, de Augusto Emílio Zaluar. ;Veja, pois, o leitor com que prazer e açodamento venho hoje falar-lhe de uma coleção de versos e bons versos!”

É o próprio Machado quem alerta ao leitor que não tem a pretensão de falar na condição de crítico, mas apenas na de cronista ou autor de impressões críticas: ;Entendo que o exame de uma obra literária exige da parte do crítico mil qualidades e predicados que poucas vezes se reúnem em um mesmo indivíduo, havendo por isso muita gente que escreva críticas, mas poucos que merecem o nome de crítico;.

Apesar da ressalva, Machado revela consciência aguda da relevância da crítica para o florescimento da cultura e não abre mão de exercê-la sequer diante dos amigos. Ao comentar uma peça do poeta e amigo Ferreira de Menezes, Machado espicaça: ;O Sr. Ferreira de Menezes não quis mais que traçar uma silhouette, sem pretensão a fazer um estudo, o menos profundo que fosse, da hipótese que figurou. Mas esta circunstância livra-o de culpa ou pena? Sou amigo do poeta, e tenho, portanto, dous motivos para dizer francamente que não. Por desambiciosas que fossem as suas intenções, há condições rigorosas a que o poeta não se podia esquivar, e essas, entre as quais avulta, a de precisar e definir os caracteres, não as teve o poeta como essenciais;.

Teatro

Machado era muito interessado no desenvolvimento do teatro e colocava frontalmente contra os decalques de obras estrangeiras: ;Tenho esses trabalhos de imitação por inglórios. O que se procura no autor dramático é, além das suas qualidades de observação, o grau de seu gênio inventivo; as imitações não podem oferecer campo a esse estudo, e tal inconveniente é altamente nocivo ao escritor, sendo imensamente prejudicial à literatura;.

As 16 crônicas de O futuro constituem um conjunto desigual, mas a inteligência, o talento e graça de Machado borbulham nessas páginas. Elas são reveladoras da integridade de um intelectual de alta classe na periferia do capitalismo: ;Expus com franqueza e lealdade, sem exclusão do natural acanhamento, as minhas impressões; os erros que tiver cometido provarão contra a minha sagacidade literária, nunca contra o meu caráter e a minha convicção;.

O futuro
Machado de Assis/Boitempo editorial e Editora Unicamp
168 páginas

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