Colocadas lado a lado, as biografias de Henfil, Frei Betto e Jango formam um perfil de um momento muito específico e recente da história do Brasil. A leitura simultânea revela o espírito de uma época e um ambiente social e político interconectado graças à trajetória de três nomes que representam a luta pela democracia no país. Por isso, vale a pena encadear O rebelde do traço ; A vida de Henfil (Dênis de Moraes), Frei Betto ; Biografia (Américo Freire e Evanize Sydow) e Jango e eu ; Memórias de um exílio sem volta (João Vicente Goulart).
Com prefácio de Fidel Castro, Frei Betto ; Biografia começou a tomar forma com um depoimento de 12 horas concedido ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas. Várias sequências de entrevistas depois, o historiador Américo Freire e a jornalista Evanize Sydow tinham em mãos um material consistente para dar origem à biografia. O volume de quase 500 páginas narra a vida de Frei Betto ancorado na cronologia, mas pontuado, principalmente, por momentos e personagens emblemáticos da história do século 20.
É o início do livro de Evanize e Freire o que mais chama a atenção, talvez por ser a parte menos conhecida de Frei Betto. Os anos de colégio em Belo Horizonte, as paixões, o ambiente escolar e a aproximação com a Juventude Estudantil Católica, que mais tarde levaria o personagem aos movimentos de esquerda, são especialmente interessantes. A dupla contou com muita ajuda do personagem para realizar a pesquisa, mas Evanize faz questão de ressaltar a total independência do processo.
Autora da biografia Dom Paulo Evaristo Arns ; morto na última quarta-feira ;, um homem amado e perseguido, ela admite que biografar personagens vivos é um desafio, mas também um privilégio. ;A coisa principal é você poder dialogar com o personagem e não deixar que ele influencie o trabalho, que os movimentos que ele continua tendo não influencie;, explica. ;No caso do Frei Betto, foi muito tranquilo, ele nos ajudou muito em termos de contato, de lembrança, de recolhimento de material. Ele só teve acesso ao conteúdo depois que estava pronto. Não houve nenhum tipo de interferência.;
Charge vigiada
Frei Betto também é personagem recorrente em O rebelde do traço ; A vida de Henfil, O melhor dos três livros recém-lançados. Publicada pela primeira vez em 1996, a edição foi revista por Dênis Moraes e volta às livrarias em versão turbinada. O autor incorporou algumas atualizações, como trechos da correspondência entre Henfil e o irmão, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Durante a ditadura, Betinho estava exilado no Canadá e se comunicava com o irmão por meio de cartas.
Henfil é enfático ao descrever para o irmão como encarava a missão (escrita em letras maiúsculas) de luta pela justiça social. Ele queria salvar o mundo e era enfático quanto a isso. ;Era um papel messiânico, não só dele, mas da parte de sua geração que, militando na esquerda católica no começo dos anos 1960, se assumiu como defensora e intérprete dos valores humanistas, combatendo desigualdades e injustiças;, conta Moraes.
Outra informação trazida graças à revisão do texto veio de arquivos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), cujos documentos estão hoje no Arquivo Nacional. ;Eles mostram como os agentes de órgãos de segurança da ditadura monitoravam o quadro de humor que Henfil protagonizava no célebre programa TV Mulher, da TV Globo, no início da década de 1980. Os relatórios enviados ao SNI o enquadravam como subversivo, alertando que ele tentava criar situações e fazia entrevistas que procuravam passar aos telespectadores mensagens ;inadequadas; de cunho político. Significa que Henfil, enquanto artista engajado, era duplamente vigiado pela repressão;, conta Moraes.
A mocidade em Belo Horizonte e a atuação na Juventude Católica, a mesma que recebeu Frei Betto, ajuda a delinear o personagem que Henfil se tornaria. A iniciação na charge de jornal, a criação das tirinhas e dos frades Baixinho e Cumprido, a mudança para o Rio de Janeiro, os primeiros passos no Pasquim, o nascimento da Graúna, com seu bico afiado para criticar os problemas do Brasil, e a consagração como mestre do humor que ajudou o país a pensar o social e a resistir à ditadura são narrados de maneira tão instigante que é difícil resistir ao livro.
Lembranças familiares
O tom de João Vicente Goulart é melancólico em Jango e eu, um livro de memórias do período do exílio da família. João Vicente inicia o livro no dia anterior ao golpe militar, 31 de março de 1964, e encerra a narrativa com a morte do pai, em 6 de dezembro de 1976. Jango morreu no exílio, na Argentina, e nunca pôde retornar ao Brasil depois de ser deposto pelos militares.
João Vicente tinha 7 anos. Ainda não compreendia o que se passava, mas entendeu a gravidade da situação quando a família deixou Brasília às pressas, em direção à fazenda do pai, em São Borja, no Rio Grande do Sul. Em seguida, foram para o Uruguai com a mãe e a irmã, Denize. ;É difícil porque realmente foi um mergulho muito profundo naqueles dias passados no exílio;, avisa o autor. ;É um tributo que eu devia a ele e a todos os que acreditam na liberdade e na democracia como forma de governo. Queria mostrar o lado humano daquele presidente que não pôde voltar ao seu país e que se tornou, na história do Brasil, o único presidente constitucional a morrer no exílio pela liberdade e pela democracia.;
; Três perguntas / Dênis Moraes
Há uma certa atualidade nessa biografia, especialmente quando pensamos no momento que o Brasil vive agora. Você concorda?
E o que a biografia do Henfil é capaz de nos dizer sobre o Brasil contemporâneo?
Sem dúvida, lida hoje, a biografia de Henfil é de uma atualidade desconcertante. Não são poucas as passagens do livro em que você termina de ler e acaba exclamando: mas isso está ocorrendo agora no Brasil! Não é difícil entender a razão. Boa parte da obra de Henfil aborda problemas socioeconômicos e mazelas políticas que, na essência, permanecem os mesmos, décadas depois. Ou seja, o país continua atolado em seus próprios impasses, infelizmente. São muitos os desenhos de Henfil sobre corrupção, crise econômica, desemprego, violência policial, descrédito dos políticos, agressões ao meio ambiente, saúde pública em frangalhos, aumento da pobreza... O afiado senso de humor e o inconformismo de Henfil seguem sendo referências vigorosas diante de uma realidade que não cessa de reproduzir injustiças e exclusões. Isso tem a ver com a sua coerência ético-política e com a sua característica singular de fazer uma crítica implacável do sistema dominante sem deixar de ser hilariante em suas tiradas.
Estamos ficando intolerantes? Há espaço para o humor na intolerância?
O humor inteligente pode ser um antivírus contra a intolerância. Quando consegue manejar bem a ironia, o gosto pela polêmica, o deboche na medida certa e o espírito aberto ao contraditório, o humor é capaz de deixar tontas muitas mentes intolerantes.
Você fala, em um trecho, que ficar indiferente era a única postura inadmissível em 1968. E hoje, qual a única postura inadmissível?
Não ser solidário às lutas pela emancipação social e pelos direitos da cidadania, em oposição ao quadro calamitoso em que se encontra nosso país.
O rebelde do traço ; A vida de Henfil
De Dênis de Moraes. José Olympio, 392 páginas. R$ 54,90
Jango e eu ; Memórias de um exílio sem volta
De João Vicente Goulart. Civilização Brasileira, 350 páginas. R$ 56,90
Frei Betto ; biografia
De Américo Freire e Evanize Sydow. Civilização Brasileira, 448 páginas. R$ 54,90