<div style="text-align: justify"><img src="https://imgsapp2.correiobraziliense.com.br/app/noticia_127983242361/2016/12/22/562333/20161222181130471743a.jpeg" alt="Clipe de 'Eu escolhi você' foi lançado na noite da última terça e removido pelo YouTube." /><br /></div><div style="text-align: justify">Um monte de gente se divertindo com os próprios órgãos genitais. É como a cantora pernambucana Clarice Falcão define o videoclipe da música <em>Eu escolhi você,</em> lançado na última terça-feira em seu canal no YouTube. Ela se diz surpresa com a comoção que causou. Depois de rebater críticas, tenta afastar de si mesma termos como ;genialidade;, ;manifesto;, ;loucura;, atrelados às centenas de comentários enviados a seus perfis virtuais nas últimas 48 horas. </div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">Clarice diz que o produto não é nada demais. ;O clipe, em si, não tem nada de revolucionário, nada de genial, nem acho que é panfletário, não é um manifesto;, avalia a artista. A rejeição do público às cenas e a censura do vídeo - removido ontem pelo YouTube - é que lhe parecem relevantes. Reacendem os debates em torno da reprovação à nudez, freada nas redes sociais, um dos principais palcos de manifestação artística na atualidade.</div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">Fechadas nos quadris de homens e mulheres, as imagens de <em>Eu escolhi você </em>geraram polêmica de imediato: enfeitados com luzes, plumas, adereços carnavalescos, genitais masculinos e femininos protagonizam o clipe, cujo desfecho põe em foco um vibrador, visto por mais de 200 mil pessoas nas duas primeiras horas de exibição. <em>Eu escolhi você</em>, dirigido por Pablo Monaqueze, com edição de Célio Porto e Phillipe Cardelli, foi lançado com restrições a menores de 18 anos. </div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">;Eu escolhi você porque/Não está tão fácil assim de escolher/ Tem muita gente ruim/ E quando não é ruim, é porque não gosta de mim/Aí termina que no fim só tem você;, diz a letra da música, segunda faixa do disco <em>Problema meu </em>(<em>Chevalier de Pas</em>, disponível no Spotify), o mais recente de Clarice, lançado em fevereiro deste ano. </div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">A problematização da nudez - e de seu veto - vai além de casos isolados: interfere no alcance de produções audiovisuais, fotográficas, plásticas, cênicas. Para a pesquisadora de gênero, feminismo e imagens Fernanda Capibaribe, professora de Comunicação Social na UFPE, a formação religiosa da sociedade ocidental contribui para a associação entre nudez e erotismo. </div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">;Há uma contradição nos julgamentos. A mulher pode aparecer seminua numa propaganda de cerveja, se serve para incentivar o olhar falocêntrico do público masculino heterossexual, mas a mulher Clarice Falcão não tem o direito de, por conta própria e como enfrentamento, mostrar corpos nus;, pontua. Para ela, a internet ajuda a ampliar o acesso à nudez, ajudando a desconstruir tabus, mas é minada pela censura - ;[a censura vai] da regulação estatal, como é o caso da China, à regulação nas redes sociais, nas quais as pessoas publicam posicionamentos, sendo muitos deles, reativos, conservadores;, analisa.</div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">Embora as principais redes sociais (Instagram, Facebook, YouTube) mencionem a restrição em seus termos de uso, há brechas, incoerências. "Um vídeo que apresente nudez ou outro conteúdo de natureza sexual poderá ser permitido se o seu objetivo principal for didático, informativo, científico ou artístico, e não for injustificadamente gráfico;, diz o código do YouTube. </div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">Clarice Falcão rebate: ;Então, se o vídeo é artístico, categoria na qual eu acho que se encaixa, sendo um videoclipe de música, não seria censurado. Na verdade, eu nunca esperei que fosse essa gritaria toda. O clipe foi feito em casa, sem a menor pretensão, com amigos. Se o clipe tiver alguma importância, e eu acho que não tem, foi de sublinhar esse ódio, que eu acho incompreensível. É o ódio aos genitais.;</div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify">Ela não é a única a criticar a conduta. No nicho virtual, campanhas como a hashtag #FreeTheNipple (;liberdade aos mamilos) pregam a liberação da nudez e reprovam, ainda, o fato da restrição ser direcionada, sobretudo, às mulheres. Projetos como o #OriginalSinProject, criado pelo artista plástico brasileiro radicado na Alemanha André Levy, reforçam a corrente libertária: ele desenha roupas íntimas em pedras, com o intuito de repudiar o excesso de decoro. </div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify"><strong>Outras censuras</strong></div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify"><strong>Caravaggio</strong></div><div style="text-align: justify">No mês passado, o Facebook bloqueou telas do século 17 assinadas por Caravaggio, como <em>Amor vincit omnia, </em>compartilhadas por promotor de arte brasileiro. A obra retrata um cupido nu, cercado por instrumentos musicais, armadura e manuscrito. A censura foi amplamente criticada no meio artístico e classificada como ;retrocesso.;</div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify"><strong>Karina Buhr</strong></div><div style="text-align: justify">Em setembro do ano passado, a cantora e compositora Karina Buhr lançou o disco <em>Selvática </em>sob polêmicas. A capa, retrato da cantora com os seios à mostra, foi proibida no Facebook, dando origem à hashtag #selvatica. Mulheres pernambucanas posaram com os seios descobertos para as lentes do fotógrafo conterrâneo Beto Figueiroa, em apoio a Karina.</div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify"><strong>Vietnã</strong></div><div style="text-align: justify">Em setembro deste ano, uma foto icônica da <em>Guerra do Vietnã </em>foi removida do Facebook. Feito pelo fotógrafo Nick Ut, o registro mostra a menina Kim Phuc correndo nua numa estrada após ataque norte-americano, em 1972. O Aftenposten, maior jornal da Noruega, chegou a publicar carta aberta criticando o posicionamento de Mark Zuckerberg, gerando grande repercussão nas redes ao acusá-lo de abuso de poder. </div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify"><strong>Entrevista: Fernanda Capibaribe, professora de Comunicação Social na UFPE e pesquisadora de gênero, feminismo e imagens</strong></div><div style="text-align: justify"><br /></div><div style="text-align: justify"><strong>A nudez ainda é muito castigada? Por que é um tabu?</strong></div><div style="text-align: justify">A nudez ainda é muito censurada de uma forma geral. Isso porque a nudez vem intimamente atrelada à ideia de erotismo/pornografia e por vários motivos, sendo o principal deles o nosso legado cristão/religioso, as referencias ao sexo são entendidas enquanto tabu. Obscenas, portanto. O sentido da palavra "obsceno" vem de "ob" (oposição) e "caenus" (sociedade). Então, engloda tudo o que ofende ou enfrenta uma ideia de bem-estar compartilhado. Na língua inglesa, esse sentido também se conecta à ideia de "off-scene", ou seja, tudo o que deve ficar "fora de cena". O sexo é talvez a temática que mais se encaixe nessa ideia, sendo entendido como um atentado ao pudor. E a nudez vem no pacote.</div><div style="text-align: justify"><strong><br /></strong></div><div style="text-align: justify"><strong>A internet contribui para desmistificar o tema? Como?</strong></div><div style="text-align: justify">Alguns(mas) autores(as), tais como Linda Williams, têm reivindicado que após a internet o acesso à pornografia e a referências diversas ligadas ao sexo ficou muito mais fácil, o que trouxe para o debate a questão do tabu e da obscenidade. Ela reivindica, por exemplo, que temáticas ligadas ao sexo sejam cada vez mais debatidas, e que o sentido de "pornografia" deixe de ser obsceno e torne-se, na expressão que ela dá em inglês, "on-scene", ou seja, em cena. De fato, temos visto muito mais filmes, fotografias, animações e outros tipos de obras visuais que vão abordar a nudez e a sexualidade como forma de enfrentamento ao tabu do sexo. No entanto, não conseguimos modificar de uma hora para a outra, séculos de um legado cristão no ocidente, onde o desejo é ameaça e, portanto, deve ser controlado. </div><div style="text-align: justify"><strong><br /></strong></div><div style="text-align: justify"><strong>Alega-se que, enquanto cenas artísticas de nudez são censuradas, cenas de violência, estupro e sexualização da mulher são veiculadas. Concorda que há incoerência nas normas? </strong></div><div style="text-align: justify">Há uma contradição nos julgamentos, porque há uma hipocrisia no trato social e um problema gravíssimo de naturalização de certas ideias em nossa sociedade. O Brasil, por exemplo, é um país onde a cultura do estupro está entranhada no trato social. Um país extremamente machista, atravessado pela naturalização das relações desiguais de sexo-gênero. Nessa desigualdade, os corpos de mulheres são ;propriedade; do olhar falocêntrico. Este - muitas vezes reproduzido por outras mulheres, mas majoritariamente por homens -, ao mesmo tempo em que é permissivo quanto ao abuso e a violência em diversos níveis praticada contra as mulheres e outros grupos LGBT, como se isso fosse "normal", também regula esses corpos, julgando quando sua aparição é bem-vinda ou não. </div><div style="text-align: justify"> </div><div style="text-align: justify">Por <em>Diário de Pernambuco. </em></div>