Quando criança, ele não perdia uma sessão das chanchadas da Atlântida e sonhava em ser o Cyll Farney. Foi por meio do cinema que Gilberto Bartholo esbarrou com as artes. O teatro aparece na adolescência e o fisga de maneira irreversível. Foi na escola que ele pisou no palco pela primeira vez, por conta de uma professora-atriz. Ele chegou a frequentar, às ocultas, o extinto Conservatório Nacional de Teatro ; onde figurava a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), parcialmente destruída após o golpe militar de 1964 ; mas não recebia apoio da família e teve que se afastar. Não desistiu.
A estreia profissional viria em 1970, quando ele integra o elenco da primeira montagem brasileira do musical Hair, que contava ainda com um jovem Ney Latorraca. Encara outros musicais, vive o ofício de ator com intensidade e passa longo período a serviço da plateia. Depois, assume a pesquisa e o magistério, e se torna professor de português e de teatro.
Mas jamais deixa de frequentar as salas de espetáculo. Pelo contrário. Gilberto assiste a uma média de 300 peças anualmente. Em 2016, por exemplo, foram 321 produções. Diante da experiência e da jornada, ele passou a escrever. Tornou-se crítico independente de teatro por meio de um blog próprio (oteatromerepresenta.blogspot.com.br), jurado de prêmios nacionais e uma das figuras mais colaborativas da cena carioca, sendo querido por público e classe. Em entrevista ao Correio, Gilberto fala sobre uma das ocupações mais temidas e expressivas da imprensa nacional, o crítico de teatro. Pelo menos, assim foi no passado. E, hoje, em que pé andam?
Entrevista // Gilberto Bartholo
Os críticos de teatro já foram figuras das mais expressivas na formação de opinião pública. Eram amados e odiados, mas muito conhecidos e respeitados. Lamenta a perda dessa expressividade atual ou prefere o cenário que temos hoje?
A crítica teatral, no Brasil, com raríssimas exceções, nunca chegou ao ponto de levar um espetáculo ao fracasso ou ao extremo sucesso, como ocorre em outros países. Entretanto, exercia alguma influência sobre uma pequena parcela da população. Em 67 anos de vida, poucas vezes ouvi alguém dizer que queria ver tal espetáculo ou que não passaria nem pela porta do teatro, porque o crítico ;a; ou ;b; disse isso ou aquilo. Sempre fui, ou não, ao teatro, por interesse ou desinteresse, nunca pela opinião da crítica. Mas não nego que a mídia, não o crítico exatamente, ajuda bastante. Seja boa ou ruim a crítica, ou a informação, vou lá para conferir. Assisto a praticamente tudo: de superproduções com atores globais a modestas montagens na periferia, de segunda-feira a domingo.
Em tempos de redes sociais, o que muda em relação à crítica de teatro?
As redes sociais ajudam bastante na divulgação e promoção dos espetáculos, positiva ou negativamente. Com o advento delas, surgiram muitos críticos e ;críticos;. Há espetáculos, hoje, que poderiam se sustentar em cartaz, por um longo tempo, garantidos apenas pelos comentários e indicações via redes sociais. Antigamente, havia gente que comprava o jornal para ler o que foi dito da nova peça do fulano. Com a internet, esse processo se tornou muito mais prático, barato e agradável. As minhas críticas alcançam um grande número de leitores, mesmo sendo publicadas apenas na minha página no Facebook e no meu blog, com excelentes retornos.
A crítica, hoje, acabou restrita à classe?
Não exatamente, mas restringiu-se a um nicho muito pequeno. Ela é de interesse da classe e de pequenos grupos de pessoas que são admiradores e frequentadores assíduos das casas de espetáculo. As pessoas, de uma forma geral, estão mais interessadas em outras coisas, até mesmo nos escândalos diários de corrupção, para saber quem vai ser solto ou preso ou quem está sendo denunciado na delação premiada do dia.
Atualmente, qual seria o objetivo maior de uma crítica de teatro?
Acho que continua o mesmo: julgar uma produção teatral, sob vários pontos de vista. Não tenho a pretensão de fazer com que cresçam os borderôs. No entanto, minha paixão pelo teatro é tão imensa que escrevo muito com a alma e com o coração, e me emociono muito ao escrever. Eu gostaria, no fundo, de que as pessoas que me leem sentissem vontade de largar tudo o que estão fazendo e corressem para o teatro.
Acredita que os críticos ainda sejam capazes de influenciar público e companhias?
Não muito. Quem, hoje, compra um jornal ou revista, para saber se deve ou não assistir a uma peça porque fulano a recomendou ou não? Esse papel ficou para a mídia, em geral. Os atores de uma peça vão ao RJ-TV num sábado, ou no recém-extinto Programa do Jô, por exemplo, e a lotação do teatro é esgotada. Alguns profissionais de teatro ainda se deixam abalar, negativamente, quando alguém fala mal de suas peças, mas não como antigamente, quando as companhias partiam para uma estreia, tensas, pensando: o que o crítico tal vai achar do espetáculo? Ainda vejo amigos meus se lamentando porque alguém falou mal da peça, mas a maioria reage de outra forma: ;Não gostou? Azar o dele ou dela! O público gosta;.
Você se identifica com a figura de Bárbara Heliodora, da crítica suprema, temida e amada?
Não me identifico. Sempre respeitei, e muito, dona Bárbara. Muito mais como ser humano e grande conhecedora da arte de representar, principalmente quando, numa produção, estava envolvido o nome de William Shakespeare, de cuja obra ela sempre foi a maior expoente no Brasil, em termos de cultura e conhecimento. Poucas vezes, pouquíssimas mesmo, a minha opinião foi ao encontro da dela, mas isso não é o mais importante. Divergir, em gostos, é salutar e normal. O que me incomodava bastante era a forma como ela dizia que não gostava de um espetáculo ou de algum detalhe dele. A sua linguagem e o seu ;excesso de sinceridade;, uma quase crueldade, é que me chocavam bastante, mas jamais negaria a sua importância para a crítica teatral brasileira.
Por que a escolha em publicar apenas críticas de espetáculos que gostou?
Por alguns motivos. Em primeiro lugar, porque indo ao teatro praticamente todos os dias, não teria tempo hábil para escrever sobre tudo o que vejo. Em segundo, porque antes de crítico, sou ator, conheço o outro lado da margem e sei o quanto custa pôr um espetáculo de pé, por mais simples e despretensioso que seja. Sei quantas pessoas estão por trás de uma produção. Conheço todas as dificuldades de se conseguir uma pauta, patrocinadores e apoiadores. Nada é facilitado a quem quer fazer teatro; ao contrário, parece que todos os obstáculos são colocados no caminho. Quem está ali, colocando a cara a tapa, está dando o seu melhor, está trabalhando com o objetivo de agradar ao público e achando que está fazendo bem, acreditando no seu trabalho. Não me sinto confortável no papel de carrasco. Para destruir um trabalho, muitas vezes, sem o menor sentido de justiça e verdade, existem muitos; para auxiliar a erguer, para elogiar, para ajudar, poucos atuam. Eu sempre fui e sempre serei um desses.
É possível amizade entre crítico e criticado? Não compromete o trabalho?
Respondo por mim. Não misturo as coisas. Seria capaz de apontar uma pequena lista de artistas que não gosto ; alguns intragáveis ; aos quais dedico um seco cumprimento, mas sobre os quais não poupo elogios, quando os merecem. Da mesma forma, não comento espetáculos de amigos, que, por infelicidade, não estão bem em cena. Há críticos que não se relacionam com ninguém. Chegam ao teatro, ficam isolados, assistem ao espetáculo e saem à francesa. Respeito esse comportamento, mas sou feliz com o meu. Sou afetivo e gosto de cultivar boas amizades. Mas aquelas nas quais detecto algum tipo de interesse são logo descartadas.
Nesses anos como crítico, alguma história de bastidores que pode compartilhar conosco?
Houve o caso de um crítico ; ou crítica, prefiro não dar pistas ; se sentar ao meu lado, durante um espetáculo, visivelmente contrariado por estar ali. Chupava balas seguidamente, incomodando os atores e os que estavam a sua volta, com o ruído da embalagem das guloseimas ; isso na primeira fila. Depois, escreveu uma crítica, também injustíssima, detonando o espetáculo. Há o caso de outro, sentado a meu lado, que dormiu, durante boa parte da peça, e, ao final, com a plateia ovacionando os atores e eu a gritar ;Bravo!”, acordou, de um salto, imitou-me o gesto e escreveu uma crítica maravilhosa sobre a peça, que bem a merecia, é verdade, mas por parte de quem assistiu, e não de quem teve até a oportunidade de sonhar, enquanto roncava. (risos)
O que diria sobre o teatro de Brasília? Este ano, você assistiu a Noctiluzes, Entrepartidas...
Confesso que fui ver Noctiluzes ; num teatro pequeno, perto da Central do Brasil, um local de difícil acesso e alto grau de periculosidade ; com pouca expectativa, pois não conhecia trabalhos anteriores do grupo. Fui mais por obrigação, uma vez que, além de crítico, sou jurado de prêmios de teatro. Mas saí do teatro em estado de graça, porque vi um espetáculo belíssimo, feito com muita garra e amor, utilizando parcos recursos cênicos, porém de uma expressividade a toda prova. Ao mesmo tempo, saí triste, pelo fato de saber que poucas pessoas tiveram e teriam a oportunidade de entrar em contato com um teatro de tão alta qualidade.
E Entrepartidas, do Teatro do Concreto? Eles também estiveram no Rio...
No caso de Entrepartidas, fui mais movido pela curiosidade da proposta: um espetáculo interativo, em que os espectadores se deslocavam, aos vários espaços cênicos públicos, urbanos, transportados num ônibus, que, ainda apor cima, saía da porta de um cemitério, no bairro de Botafogo. Era muito desafio, e eu gosto disso. O novo não me assusta, instiga-me. Fiquei encantado com o espetáculo, que é tão lindo e real, tão próximo à realidade do nosso dia a dia, que, completamente entusiasmado com a experiência, comecei a escrever sobre ele assim que cheguei a casa, o que não é hábito meu. Esses dois espetáculos mostram que além do eixo Rio-São Paulo, existe, Brasil afora, uma infinidade de excelentes trabalhos que devem ser vistos e aplaudidos pelos brasileiros. É preciso uma política de integração cultural no Brasil.
A predominância de musicais e comédias não te desagrada? É válido termos patrocínios e editais favorecendo iniciativas tão grandiosas, enquanto pesquisas, grupos menores e gêneros menos populares são desfavorecidos?
Não sei se há uma predominância de musicais e comédias. Mas a produção de musicais, que eu adoro, proliferou muito, e chego a arriscar que, em alguns casos, em nada ficamos a dever a produções estrangeiras. Alguns produtores ainda insistem em investir em comédias, muitas de gosto duvidoso ; a maioria ;, de grande apelo popular, visando o lucro, porém têm surgido algumas de excelente qualidade. Penso que o que importa não é o gênero do espetáculo, mas a sua qualidade, se o que foi investido na produção se justifica. Quando uma quantia vultosa é direcionada a uma produção que corresponde, em qualidade, ao que foi investido, fico feliz. O pior é ver (não vou citar nomes, para não criar polêmicas), muitos cifrões aplicados em verdadeiros ;lixos;. Isso muito me entristece e irrita.
Você tem uma referência pessoal na crítica?
Sim. Na verdade, duas, embora admire o trabalho de alguns colegas, cujos nomes prefiro omitir, para evitar melindres. Minhas grandes referências, infelizmente, já não estão entre nós. Yan Michalski, um judeu polonês que chegou ao Rio de Janeiro, com a família, aos 12 anos, fugindo da guerra, e que também foi ensaísta, tradutor, ator e diretor de teatro. Era respeitadíssimo pela classe artística e pelo público. O outro nome foi Sábato Magaldi. Seus prefácios às peças são verdadeiros ensaios sobre a obra do dramaturgo. Foram, e ainda são, meus ídolos.
Consegue nos contar quem é sua atriz, ator e espetáculo favoritos?
Nem sob tortura! (risos) Eu sou um crítico muito generoso e acho que, de uma forma geral, temos excelentes atores e atrizes, tanto os da velha geração, como os novos. Há uma grande safra de novos talentos que têm tudo para ocupar os espaços que vão sendo deixados por aqueles que morrem ou que abandonam o nobre ofício de representar. Quando penso nos atores, diretores, produtores e técnicos, digo sem hesitar que acredito muito no talento do artista de teatro brasileiro.