A menina Maria do Carmo de Carvalho Rebelo e Andrade, a Carminho, começou a ouvir músicas de Tom Jobim na trilha sonora de novelas brasileiras que eram exibidas em Portugal. A partir de então, quis saber mais sobre a obra sofisticada de um dos pais da bossa nova. Tinha sempre por perto um disco dele, da coleção de raridades de Teresa Siqueira, a mãe fadista.
Na adolescência, a ;miúda; começou a cantar na Taverna do Embuçado, casa de fado da família, em Alfama, o popular bairro lisboeta. Mas, só após ter se diplomado em marketing e publicidade, é que se lançou de vez na carreira artística. Para tanto, foi decisivo o lançamento do disco de estreia, intitulado Fado.
Em uma de suas primeiras vindas ao Brasil, em 2011, Carminho se aproximou de artistas da MPB e, em Alma, seu primeiro disco lançado aqui, incluiu duetos com Chico Buarque (Carolina), Milton Nascimento (Cais) e Nana Caymmi (Contrato de separação). Há dois anos, no CD Canto, dividiu com Marisa Monte a interpretação de Chuva no mar (ouvida atualmente na trilha do folhetim A Lei do Amor) e gravou O sol, eu e tu, de Caetano Veloso, César Mendes e Tom Veloso.
Finalmente, aos 32 anos, ela pode concretizar um dos seus maiores sonhos, tornar-se intérprete de composições jobinianas. Pela Biscoito Fino, saiu Carminho canta Tom Jobim, álbum de 13 faixas ; criações do Maestro Soberano (com parceiros Aloysio de Oliveira, Newton Medonça, Dolores Duran e, claro, Vinicius de Moraes), entre as quais os standards O que tinha de ser, Wave, Luiza, Inútil paisagem, Tristeza e A Felicidade.
O álbum traz também duetos de Carminho com Maria Bethânia (Modinha), Marisa Monte (Estrada do sol), Chico Buarque (Falando de amor) e o cantor português Antônio Zambujo (Sabiá). Sem abrir mão do pronunciado sotaque lusitano nesse projeto, ela chegou a pedir a Chico que a autorizasse a trocar você por tu, num verso de Retrato em branco e preto. Há, ainda, a versão norte-americana de Por causa de você, sob o título Don;t ever go away, assinada por Ray Gilbert.
Mesmo já há algum tempo decidida a cantar Tom, Carminho chegou ao CD por sugestão de Ana Jobim (viúva do compositor e pianista) e de Kati Almeida Braga (diretora da Biscoito Fino), depois de ouvi-la interpretar canções do homenageado numa festa. Coube a Paulinho Jobim, filho do maestro, colocar à disposição de Carminho uma planilha com, aproximadamente, 300 músicas.
Cheia de cuidados com o projeto, a cantora quis ter ao seu lado instrumentistas que trabalharam com o homenageado; e a escolha não poderia ter sido outra. Ela contou com Paulinho Jobim (violão e arranjos) e Jaque Morelembaum (violoncelo) e Paulo Braga (bateria), músicos da Banda Nova, nome do quarteto que acompanhava Tom. A eles, juntou-se Daniel Jobim, que assumiu o piano, em substituição ao avô.
No momento, Carminho cumpre compromissos em Portugal ; onde o disco é um dos mais vendidos ; e outros países da Europa. Em março, ela volta ao Brasil para uma série de shows, que tem início no dia 24, no Vivo Rio (Rio de Janeiro). Ela, que nunca se apresentou em Brasília, diz ter muita vontade de conhecer a capital, ;criação arquitetônica do fabuloso Oscar Niemeyer;.
Carminho canta Tom Jobim
CD com 13 faixas. Lançamento da gravadora Biscoito Fino. Preços médio: R$ 30.
Confira a entrevista com Maria do Carmo de Carvalho Rebelo e Andrade, a Carminho:
Como chegou à obra de Tom Jobim?
Despertei minha atenção para as músicas de Tom Jobim ainda pequena, ouvindo-as na trilha sonora de novelas brasileiras exibidas em Portugal. Depois vi que, separadas das novelas, elas faziam parte do repertório dele e percebi a importância de Tom na música brasileira e na música do mundo. Fiquei encantada.
De que forma você buscou ter um conhecimento maior sobre Tom?
No meu caminho até Tom Jobim, houve pessoas e fatos que me levaram à figura que criei dentro de mim. Veio através de um conjunto de peças: histórias que me contavam, comentários que li, músicas que ouvi. Chico Buarque me falou sobre a personalidade e a generosidade de Tom, que gostava de ter as pessoas perto dele, de partilhar com os mais novos, de fazer parceria com muita gente.
Qual foi o critério para a definição do repertório?
Parti de alguns critérios. Há algumas canções de Tom que são bem conhecidas em Portugal, mas não são muito cantadas no Brasil. Há outras famosas no Brasil, que os portugueses ainda não descobriram. Quis que as melodias e os poemas fossem confortáveis na minha voz, que eu me sentisse natural ao interpretá-las. Escolhi as que me marcaram, como Luísa e Wave. As cantadas por intérpretes, como Bethânia e Milton, despertaram em mim a vontade de conhecer mais a cultura brasileira.
O que a levou a fazer duetos?
Esses duetos são um privilégio para mim. Já conhecia o Chico Buarque, por quem tenho admiração e que gravou comigo no CD Alma. Bethânia é, para mim, uma intérprete excepcional, que olha para as palavras, para o sentido das frases. Ela me emociona por ser tão real e pictórica. A percebo uma mestra. Marisa Monte é minha irmã no Brasil, uma pessoa generosa, que me presenteou com Chuva no mar, uma canção linda, dela e de Arnaldo Antunes, para o CD Canto em que fizemos dueto. Marisa diz o que sente, sem filtro. Eles, assim como Fernanda Montenegro ; que, na abertura de Sabiá, recita versos da Canção do exílio, de Gonçalves Dias ; não se fecham, não têm medo de dar o que têm, porque possuem talento inesgotável.
Foi sua a escolha dos músicos que a acompanharam nesse projeto?
Quis ter comigo os verdadeiros conhecedores desse repertório. Ter essa banda a tocar no meu disco é um sonho. Tive a generosidade deles no estúdio, ao aceitarem minhas sugestões. Perceberem que tenho uma identidade, minha linguagem, minha cultura, minha forma de interpretar. Sem eles, não sei se existiria esse disco. O quarteto funcionou como uma rede para um trapezista. Sabia exatamente o que era importante manter e deixar a minha imaginação fluir.
Que disco você quis fazer?
Quis fazer esse disco de forma clássica, respeitadora, sem ser óbvia; mas, ao mesmo tempo, sentir que é algo que me represente como intérprete portuguesa e cantora da música do mundo.
Ter uma música na trilha sonora de uma novela brasileira ; A Lei do Amor ; o que representa para você?
É algo extraordinário, no sentido que me revejo. Conheci a música brasileira através das novelas, das músicas que elas traziam. E penso que agora faço parte desse universo; que o Portugal contemporâneo pode ser representado por mim nesta viagem que as músicas de novela levam as pessoas a fazer.
Brasília, onde você nunca se apresentou, pode receber o show de lançamento do seu álbum?
Quero muito conhecer Brasília, os projetos do fabuloso arquiteto Oscar Niemeyer. Me disseram que é uma cidade de clima seco, mas com características únicas. Gostaria que um dos shows desta turnê fosse em Brasília.
Crítica
Carminho é uma das maiores cantoras contemporâneas de fado de Portugal. Tom Jobim, um dos maiores compositores da música brasileira. À primeira vista, juntar o talento dos dois parece aposta certa para um grande disco. Mas o ritmo e as melodias surpreendentes do brasileiro impõem desafios, e a portuguesa nem sempre soube contorná-los.
Carminho canta Tom Jobim é um disco de altos e baixos. Há momentos intensos em que a interpretação da cantora consegue achar o rumo da genialidade de Jobim, mas há outros em que tudo parece travado demais. O acompanhamento da Banda Nova (a mesma que acompanhava Tom) é correto, mas sem riscos.
A falta de regularidade talvez se deva ao fato de Carminho não se render. A portuguesa mantém o estilo de fadista no disco todo, sem fazer qualquer concessão. Se isso cai bem em canções como Modinha e Luiza, soa muito estranho quando o ritmo é o samba.
Falta o balanço brasileiro. A dureza do fado é bela (e Carminho exímia re presentante do estilo), mas o samba exige malemolência que, neste disco, a portuguesa não encontrou.
Difícil não comparar com o conterrâneo António Zambujo, que gravou um disco com canções de Chico Buarque (Carminho até participa em uma faixa). Zambujo, ao contrário dela, fez concessões no álbum todo e soa quase brasileiro ; e inovador ; em muitos momentos.
Carminho canta Tom Jobim passa bem longe de ser um disco ruim. O saldo é positivo, apesar dos deslizes, mas falta muito para que qualquer interpretação do álbum fique eternizada. Considerando que se trata de Carminho e de Tom Jobim, parece muito pouco para a grandeza dos dois. (Alexandre de Paula)