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Ser ou não ser tecnológico? Veja o que especialistas pensam sobre o assunto

O mundo moderno provoca mudanças nas relações humanas e modifica a maneira como os homens estabelecem seus laços

Nahima Maciel
postado em 26/01/2017 07:30

O mundo moderno provoca mudanças nas relações humanas e modifica a maneira como os homens estabelecem seus laços

A tecnologia mudou as relações humanas. Iniciam-se e terminam-se relacionamentos por WhatsApp, consulta-se o Facebook para as notícias do dia, das jornalísticas às pessoais (inclusive as falsas), e revela-se a intimidade no Snapchat e no Instagram. O Netflix é capaz de lhe oferecer séries e filmes bem próximos do seu gosto e uma navegada inocente no Google faz pipocar na tela aquela promoção esperada há meses. A vida em algoritmos é uma realidade, mas não uma novidade. Segundo o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens ; Uma breve história da humanidade e de Homo Deus ; Uma breve história do amanhã, a biologia já provou que o homem é um conjunto de algoritmos bioquímicos programados para funcionar de acordo com equações pré-estabelecidas.

O livre arbítrio, o pesquisador sustenta, não existe e a era da Revolução Científica acabou. O Homo sapiens vai desaparecer e a fusão do homem com a tecnologia dará início a uma nova espécie, em parte controlada por aparatos tecnológicos. ;Quando a engenharia genética e a inteligência artificial revelarem todo o seu potencial, o liberalismo, a democracia e os livres mercados poderão tornar-se tão obsoletos quanto facas de pedra lascada, fitas cassete, o islamismo e o comunismo;, escreve Harari em Homo Deus.

A transformação já começou e o mundo líquido citado pelo sociólogo Zygmunt Bauman não tem mais retorno. É possível escapar da solidão com apenas um clique, mas é possível alimentar a imaginação, ler um livro, contemplar o mundo pela janela e estar a sós consigo mesmo quando a tecnologia está ao alcance? Em 44 Cartas ao mundo líquido, Bauman especula que não, não é possível. E aí, o homem perde um elo consigo mesmo. O Facebook, por exemplo, é capaz de provocar alterações de humor porque, graças às equações, conhece seus usuários melhor que eles mesmos.

;O que devemos levar a sério é a ideia de que a próxima etapa da história incluirá não só transformações tecnológicas e organizacionais como também transformações sociais na consciência e na identidade humana; Yuval Noah Harari, historiador


Uma pesquisa encomendada pelo Google revelou que o algoritmo da rede social precisa de apenas de 150 likes do usuário para conseguir predizer o comportamento de uma pessoa tão bem quanto um familiar. Ou seja, com mais de 150 likes, o Facebook seria capaz de conhecer melhor o indivíduo do que a mãe, o pai, o cônjuge ou qualquer pessoa com a qual mantenha relações íntimas.

No primeiro episódio da terceira temporada da série Black Mirror, a vida social dos personagens é organizada de acordo com o número de estrelas conseguidas pelas avaliações de desconhecidos e conhecidos em uma rede social. A popularidade permite oportunidades, e a falta dela isola os indivíduos. Pode parecer um exagero, mas o caminho para esse tipo de sociedade já está trilhado. O escritor Dave Eggers explorou o tema em um romance emblemático do século 21. O círculo narra o cotidiano de empregados de uma grande corporação do Vale do Silício. O autor se espelhou no Google e foi além: quem trabalha para a empresa entra para um esquema de escravo das redes sociais. Em nome da transparência, não há mais privacidade. Relação contundente também é apresentada no filme Ela, de Spike Jonze, com Joaquin Phoenix. O personagem se apaixona por um sistema operacional de computador.

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Nesse meio, a alma se funde com a tecnologia. Mas qual o limite da atuação dos algoritmos? O homem pode ser dominado por eles? O Correio perguntou a cientistas, filósofos, escritores e artistas o que pensam da associação entre o homem e a tecnologia.

BARBARA FREITAG // Socióloga

BARBARA FREITAG, sociólogaInterferências
Era digital, internet, WhatsApp, telefone celular, i-Pad, acho que essas inovações tecnológicas interferiram muito no comportamento dos brasileiros. Positivamente, quando recorrem às facilidades de um Google para confirmar esquecimento ou lacunas de saberes. Negativamente, quando pais e filhos não se comunicam nos restaurantes, olho no olho, mas somente via celular de cada um, boicotando-se qualquer forma de comunicação autêntica! Será que um beijo apaixonado ou um orgasmo via WhatsApp é comparável a uma relação física de fato?

Eficácia
Essa lógica digital não está somente a serviço da ;eficácia;. Se você não domina a tecnologia e os avanços do celular como mediador de todas as nossas ações, ela nem sempre produz resultados eficazes. Você já pensou em falar pelo telefone celular com uma pessoa doente? Em coma, em estado terminal? O efeito é zero. Tecnologia não é igual a eficácia. Pense em Auschwitz, em guerras atômicas, em uso e abuso da tecnologia contra os fins para os quais foi criada.

Amor x tecnologia
Desconfio da competência erótica, sádica ou mafiosa do computador. Aí, esse já teria de ser um robô, duplicação de um ser humano, um Frankenstein ou um sedutor programado segundo emoções e perversões humanas.

Redes sociais
Não sou muito amiga das redes sociais que, à la Trump, são utilizadas para mentir, perverter e enganar os seus interlocutores e leitores. A campanha eleitoral americana deu-nos uma prova de como podem ser destrutivas.

Filtros
Concordo inteiramente com Umberto Eco: criar ;filtros; para evitar os impactos nocivos e colaterais das redes e não se deixar levar e envenenar por elas.

MICHEL LAUB // Escritor

Escritor Michel LaubMudança e tecnologia
O homem sempre mudou por causa da tecnologia: desde o domínio do fogo até coisas recentes em termos históricos, como o avião e a pílula anticoncepcional. Algo tão onipresente como a internet (e as redes sociais, vindas na esteira disso) obviamente teria impacto no nosso comportamento, na nossa cultura, na nossa política.

Reféns de algoritmos?
Difícil responder. Há coisas que certamente mudaram com a revolução digital, como o conceito de inteligência ligado ao conceito de memória. Talvez, no futuro, surja um ser humano diferente do que conhecemos, em função de fatores como a engenharia genética, mas num horizonte próximo há particularidades humanas que seguem imprevisíveis e indomesticáveis.

Reverter a distopia?
O mundo hoje é melhor do que nos anos 1950, digamos. O que talvez tenha piorado é a confiança no futuro. No momento, não se vê saída para problemas objetivos e sérios, como o da sobrevivência humana digna sob ameaça ecológica. A solução possível para isso passaria por uma reavaliação de valores da sociedade atual ; o consumismo, por exemplo, ou a ideia de crescimento econômico constante.

ADAUTO NOVAES // Filósofo

Filósofo Adauto NovaesMutação
É certo que vivemos uma grande mutação. Como escreveu Paul Valéry, ;nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais;. Ele antecipava o fim da chamada ;civilização ocidental; e hoje podemos dizer que entramos na era da civilização tecnocientífica. Mas o que há de diferente das mutações anteriores ; o renascimento, o iluminismo ;, que eram precedidas de grandes projetos humanistas? A atual mutação é feita no vazio desses ideais, feita no vazio do pensamento, porque é produzida pela ciência e pela técnica. Como diz Heidegger, ;a ciência não pensa;.

Transformações
Se observarmos, não há área da atividade humana que não esteja passando por transformações: os costumes, as mentalidades, a política, os valores, a ética, as artes. Essa mutação ganha corpo através da nanotecnologia, da biotecnologia e do digital. As noções de tempo e espaço estão alteradas. Com a globalização e com a revolução digital, por exemplo, o que nos resta é um presente eterno: há uma exigência permanente da instantaneidade, da simultaneidade e da ubiquidade (estamos em todo lugar ao mesmo tempo). O ;futuro; é desejado e atendido de imediato. Ora, sabemos que é o futuro que dá sentido ao presente, uma vez que todo presente é sempre incompleto e imperfeito. Daí, a angústia e a depressão.

Obsolescência
Günter Anders, no livro A obsolescência do homem, diz uma coisa importante para entender o poder da técnica. Para ele, o sujeito histórico, hoje, não é mais o homem, mas a técnica. Anders escreve: ;Fomos destronados (ou nós nos deixamos destronar) e pusemos em nosso lugar um outro sujeito da história, não, o único outro sujeito possível da história, a técnica... o que é confirmado da maneira mais espantosa pelo fato de que o ser ou o não-ser da humanidade depende, a partir de agora, do desenvolvimento da técnica e da sua aplicação;.

Homem mecânico
Para alguns teóricos, esse tempo já chegou: não se trata da humanização da máquina, mas da mecanização do homem.


Fonte: Dados do Internet Live Stats


FABRÍCIO MONTEIRO NEVES // Professor de sociologia/UnB

Interferência ou mapeamento?

As duas questões são verdadeiras. A sociologia da tecnologia traz em sua proposta a ideia de coprodução da sociedade e da tecnologia. Isso quer dizer que seres humanos constroem tecnologias nos contextos onde atuam, e estas interferem em tais contextos, alterando a sociedade. Deve-se observar tal processo não de forma linear, mas seguindo dinâmicas contingentes. Ninguém pode prever desastres aéreos, pode-se fazer análises de riscos e criar dispositivos pra evitá-los, mas nem assim controlamos totalmente a ocorrência deles.

Brechas e falhas
Mesmo algoritmos contém brechas e falhas em seu processamento, e pessoas podem alterá-los, transformá-los. Mesmo algoritmos possuem política por trás, veja o caso do Facebook, que direciona preferências, ou o caso do Google, que direciona a busca para conteúdos pagos. Todos os dispositivos tecnológicos funcionam em contextos sociais específicos e contingentes e, desta forma, são frutos das dinâmicas sociais. Por isso, diria que tais dispositivos interagem com nossas habilidades, são transformados por elas e as transformam concomitantemente.

Relacionamentos

Não podemos prever o futuro. Mas o que é interessante no filme Ela é que nem um programa de computador pode dar conta dos desejos e paixões humanas. Ainda que a personagem ;sistema operacional; pudesse incorporar um suposto par perfeito, sua dinâmica amorosa com o personagem de Joaquin Phoenix produziu problemas típicos dos casais românticos. Se você observa a sociedade presente, muitos sites já existem para dar conta de tais contingências, tentam mediar problemas de relacionamentos, de encontros, problemas sexuais. Oferecem um ;algoritmo; perfeito para uma vida amorosa plena. As pesquisas mostram que sua eficácia acaba quando o relacionamento se ;cotidianiza;, quando ele se torna ;típico;, quando ele sai da esfera da imagem perfeita veiculada na propaganda do site que prometeu o paraíso. É aí que o ;real; ultrapassa o ;virtual;.

Sonhos versus distopias
Duvido de qualquer um que tenha uma resposta fácil para a questão acima. Quem oferece este tipo de resposta é a religião, com suas cosmogonias específicas. A utopia técnica estava na constituição da modernidade, com sua narrativa evolucionista e suas imagens de futuro regido pela ciência e tecnologia. As consequências deste novo tipo de fé levou a projetos colonizadores de extermínio de populações.

Internet versus filtros
A ideia de avanço ainda está vinculada à narrativa evolucionista acima. Para quem sofreu linchamento público, certamente não é. Para uma pequena empresa que consegue divulgar ;de graça; seu produto, pode ser. A tecnologia é um Golem, na metáfora do sociólogo inglês Harry Collins. Refere-se ao monstro meio desajeitado que precisa ser direcionado para fazer as coisas certas. Sem comando, tal ser faria coisas ruins. A questão é: quem daria o comando? Qual seria o comando? O marco civil da internet, assinado pela presidente Dilma Rousseff, foi um avanço e um exemplo ao mundo. Foi uma reação à espionagem americana de governos e empresas. Conviveremos daqui para frente com estas duas direções civilizacionais para a tecnologia: ou aceitaremos um mundo em que a internet sirva aos interesses dos países imperialistas e empresas transnacionais ou construiremos um marco que os impeça e direcione a internet para os interesses de toda a humanidade.

Fabio Gandour, cientista-Chefe da IBM BrasilFÁBIO GANDOUR // Cientista-chefe da IBM Brasil

Interferência adaptativa

O homem é um ser adaptável ao ambiente. Se não fosse assim, a espécie humana não teria chegado até onde chegou, nesta posição tão dominante na árvore de distribuição dos seres vivos. E, a partir desta posição dominante, o ser humano vem interferindo muito no ambiente ao seu redor. Não me refiro apenas ao meio ambiente, mas ao contexto que abriga a espécie como um todo: das relações interpessoais ao próximo sanduíche que será consumido na esquina. É este cenário de interferência adaptativa que cria a impressão de estarmos mudando por interferência da tecnologia. Mas, de fato, pode ser bem ao contrário: estamos usando a tecnologia que nós mesmos criamos para poder facilitar o processo de adaptação da espécie a um mundo que se altera muito pela ação dela própria. E isto tem criado uma espiral de interferências que cresce muito rapidamente.

O que está por trás
Não acho que seremos todos reféns de algoritmos, mas é preciso perceber que uma pequena parcela da população humana sabe o que significa a palavra ;algoritmo;, uma parcela menor tem ideia de como e por que os algoritmos são construídos e uma parcela ainda menor sabe como e onde os algoritmos funcionam. Sem contar que raríssimos são os que reconhecem a presença de um algoritmo por trás de algum processo interativo. Daí, nesse cenário, teremos dois tipos de pessoas: as que conhecem e entendem os algoritmos e as outras.

Afeto (da máquina)
A prática do afeto tem um efeito intenso e bem conhecido no cérebro humano, com liberação de substâncias que causam algum tipo de emoção peculiar. No dia em que a interação com uma máquina, antropomórfica ou não, for capaz de criar o mesmo efeito, não haverá muita razão para preferir a emoção criada por um ser humano ou por qualquer outra coisa menos humana. A questão será apenas decidir entre uma interação afetiva seca ; com a máquina ; ou úmida ; com outro ser humano. Como no filme Ela, de Spike Jonze, quando o computador percebe que poderia correr o risco de perder a competição afetiva por ;falta de umidade;, como que contrata um outro ser humano para ser seu legítimo representante neste mundo dos seres úmidos. Isto não é o futuro distante. Isto é o agora. Rede social x individualidade É preciso repensar, e talvez redefinir, o que é a individualidade. Não faz muito sentido alguém que se expõe ao máximo em uma ponta do espectro da computação social querer reivindicar privacidade e individualidade na outra ponta.

Distopia
É curioso porque o cenário distópico e o sentimento distópico geram uma reação de assombramento e insegurança, mas, ao mesmo tempo, eles são atraentes a ponto de serem muito exploradas pela indústria cinematográfica. E a realidade fantástica que aparece na tela só vai de fato ser percebida quando o espectador se vê, ele mesmo, vivendo a distopia. À medida em que as pessoas percebem essa nova noção da realidade, aí sim estarão prontas para reverter a tendência criada por fome, poluição, guerras etc. Antes disto, parece que todos nós estaremos diante de uma grande sessão de cinema.

Internet: efeitos colaterais
A rede, esta e qualquer outra, é apenas um canal que permite a manifestação do ser humano. Se o ser humano piora, a culpa não é da rede. Com ou sem ela, a manifestação da maldade seria distribuída pela internet ou pelo telefone.

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