Diversão e Arte

Maria Lucia Dias Mendes propõe um novo olhar para a obra de Alexandre Dumas

Em entrevista ao Correio, a professora fala sobre a necessidade de ler a obra do escritor com um outro olhar. A rainha Margot chega em nova tradução

Severino Francisco
postado em 05/02/2017 07:00

Em entrevista ao Correio, a professora  fala sobre a necessidade de ler a obra do escritor com um outro olhar. A rainha Margot chega em nova tradução

Alexandre Dumas é a maior vítima do próprio sucesso. Escreveu algumas obras-primas da literatura mundial na forma de folhetins, publicados em série nos revistas e jornais franceses do século 19. Os seus livros intimidam ao leitor desavisado. Alguns como é o caso de O conde Monte Cristo, Os três mosqueteiros ou A rainha Margot tem de 800 a 1.400 páginas. No entanto, se o leitor começar a ler não conseguirá parar. Ele sabia enredar com a técnica do suspense, o corte dramático e a imaginação romântica descabelada para criar cenas inesquecíveis.

Durante muito tempo, Dumas foi maltratado no Brasil por adaptações e condensações que abafavam a riqueza de matizes de suas narrativas. Nos últimos dois anos, o leitor brasileiro tem sido brindado com traduções dos textos completos que fazem justiça ao talento de Dumas. A mais recente é A rainha Margot (Ed. Amarilys). Elas permitem que se aprecie e se reavalie a obra desse escritor de primeira linha na história da literatura. Nesta entrevista, a professora Maria Lúcia Dias Mendes, doutora em língua e literatura francesas, e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), fala apaixonadamente sobre a necessidade de reavaliar a relevância da obra de Alexandre Dumas.

Alexandre Dumas era romancista, poeta, dramaturgo, crítico teatral, editor e dono de jornal. Afinal, quem era esse personagem?
Ele foi contratado para fazer crítica teatral pelo La Presse, o primeiro jornal da imprensa de massa. Entrou neste sistema que é viver da sua própria pena, diferentemente do que era comum até então, quando os escritores viviam de mecenato, patrocinados por reis. Vivia do que escrevia. Vitor Hugo ganhou um concurso e foi patrocinado pelo rei durante praticamente toda a vida. Como precisava daquilo para sobreviver, Dumas tem uma personalidade muito sedutora e vai se envolver com múltiplas atividades relacionadas à imprensa. Ele faz crítica, escreve folhetins e textos de literatura de viagem. O padrão de vida dele era alto e precisava de ganhar muito dinheiro para se manter. Ele ganhou muito e foi uma celebridade do seu tempo. É uma figura que se dispõe a todas as maneiras de vulgarização. Dumas dizia sobre os seus contemporâneos: ;Vitor Hugo é um pensador, Lamartine é um sonhador e eu sou um vulgarizador;. Ele pega as ideias mais sublimes do romantismo e dissemina em uma escala massiva para a época. A crítica diz: se ele vende, então não é bom.

Ainda existe preconceito da crítica com Dumas?
Sim, o preconceito é muito forte. Quando a minha tese de doutorado só a minha orientadora me incentivou. Mesmo na França, Dumas é pouco pesquisado. No máximo, existem umas 30 pessoas que se dedicam a estudar a obra dele. Dumas teve o azar de ter nascido no mesmo ano que Victor Hugo, que foi o grande autor da França no século 19, e todo o restante ficou em segundo plano. Vitor Hugo sempre se colocou para a posteridade. Não se vulgarizou nos meios de comunicação de massa. Enquanto isso, Dumas escreveu mais de 200 títulos, fez uma literatura de consumo. Claro que nem tudo tem o mesmo valor, mas produziu obras de alta qualidade literária.

Em que medida, Dumas foi criador ou o formatador do gênero folhetim, publicado em série nos jornais e nas revistas do século 19?
Há toda uma controvérsia entre os dumasianos e os que não são sobre esse tema. Os dumasianos dizem que ele inventou o formato. Antes, já se publicava obras literárias em pedaços.As obras de Balzac saíam em La Presse desde 1833. O romance em folhetins não era novidade. Mas eu defendo que Dumas organizou, fixou e deu forma ao gênero. Ele inventou uma maneira de escrever. Tinha talento para o teatro. Usou o diálogo para segurar a atenção dramática. Pensou a obra em capítulos para manter a tensão e o leitor continuar pagando pela assinatura do jornal. A partir daí, todos os outros escritores escreveriam neste modelo. Ele fazia teste para que o romance fosse lido e aceito pelas pessoas em larga escala. Isso abriu caminho para os romances de Balzac e de Flaubert. No entanto, os folhetins produzidos a partir da década de 1860 já não apresentavam as inovações da primeira geração de escritores. Se transformou em una narrativa mais esquemática e menos experimental.

Ao ler o estudo que a senhora escreveu sobre Dumas, a impressão é de que ele constituiu uma empresa de produção de folhetins. Era uma espécie de central Globo de produções do século 19...
Isso também foi um dos aspectos que fez com que a obra de Alexandre Dumas fosse relegada a segundo plano. Um panfletista escreveu que não era Dumas o autor dos livros e que ele era uma fábrica de romances. Acusou de ser um farsante. Tinha alguém que fazia o trabalho sujo. Fez insinuações racistas, mesmo porque o pai de Dumas era negro. Ressaltou o fato de Dumas ser mulato. Pegou mal, o panfletista foi condenado a pagar uma multa e a se retratar. Acontece que Dumas trouxe do teatro esse processo de escrever em parceria. Não eram todas as obras, mas ele recorreu muito a esse processo de produção. Ele tinha muitos amigos colaboradores. Escreveu, ao mesmo tempo, O conde Montecristo, A rainha Margot e Os três mosqueteiros, as suas obras-primas.

Como avalia a acusação de que Dumas se apropriava da autoria do trabalho de colaboradores?,
Essa polêmica surgiu a partir da parceria de Dumas com o professor e historiador Auguste Maquet. Ele escrevia esboços e repassava a Dumas, que recriava e dava a cara dele à narrativa. Polia o texto e criava novas cenas. Inclusive o próprio Maquet chegou a acusar de não ter sido pago e processou Dumas. O juiz que avaliou o caso pediu os esboços dos dois e chegou à conclusão de que o brilho vinha das cenas de Dumas. Tem gente que diz que Dumas roubou história. Mas o fato é que Dumas tem uma infinidade de obras importantes e Marquet não publicou nenhuma. Dumas era uma grife, quando algum amigo tinha dificuldade para publicar, ele emprestava o nome e a obra era publicada.

Em que medida Dumas incorpora os valores do romantismo em suas narrativas?
O romantismo francês começa no século 18 e vem na esteira da Revolução Francesa. Acaba abarcando os valores da igualdade, da justiça, da fraternidade. E também os valores que o classicismo havia renegado. Nasce como uma resposta ao romantismo alemão. Alguns pontos desembocam no romantismo francês: a indagação sobre o sentido da história, as origens da França, a sensibilidade, a utopia de um mundo melhor, a crença na justiça, no progresso e na ciência. Olhar para dentro de si mesmo e para o outro. O romantismo tem essa contradição. Dumas participava de um grupo que tinha Victor Hugo, Delacroix, Liszt, entre outros. Iam à casa dele para conversar sobre arte. Eles tinham de 20 a 30 anos. Cada uma dessas pessoas interpretou o romantismo de uma maneira.
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Os romances de Dumas parecem tijolaços ilegíveis pelo tamanho, mas quando o leitor começa não consegue mais parar de ler. Em que se assenta a máquina de sedução narrativa de Dumas?
Na verdade, Dumas era um grande sedutor. Os irmãos Goncourt tinham um diário como se fosse a revista Caras. Eles diziam que, quando Dumas chegava, a festa acabava, pois todos queriam ficar em volta dele. As mulheres não sabiam dizer não. Era raríssimo. Ele era um homem bonito, mulato claro de olhos azuis,bem vestido, elegante. E ele falava muito bem, gostava de contar histórias, No folhetim, junta essa habilidade pessoal com algumas técnicas que funcionam para prender a atenção do leitor e torná-lo dependente dos jornais.

Poderia dar um exemplo?
Em A rainha Margot, ele trabalha com seis intrigas. Alterna o aparecimento dessas intrigas em capítulos. Em alguns momentos, o leitor sai frustrado: não vi o personagem com o qual me identifico. E precisa comprar o jornal para saciar a curiosidade. E Dumas tem uma habilidade incrível de, em algum instante, entrelaçar essas intrigas em uma só narrativa. Os diálogos são muito bem estruturados. Você acompanha o sofrimento do personagem. Você fica louco para saber o que o Conde Monte Cristo foi fazer em determinado baile.

Dumas recriou muitas situações da história da França. Qual a relação dele com a história?
Dumas tinha um fascínio pela história. Ele dizia que poderia ensinar mais história da França do que qualquer outro historiador havia feito. Naquele momento, os historiadores ainda não tinham fixado um método dentro das ciências humanas. Isso só aconteceu com a incorporação do positivismo pelos historiadores. Dumas achava que a compreensão da história era mais uma questão de sensibilidade do que de prova documental. Eu diria que A rainha Margot é uma das melhores obras da literatura em termos de concepção e relação com a história. Dá conta de um período turbulento, com grande dramaticidade e recria para o leitor o espírito de época. Michelet dizia que caberia à história recriar mundos e fazer os fantasmas falarem. E Dumas fez isso muito bem.

Quais são as obras-primas de Dumas?
O conde Monte Cristo, Os três mosqueteiros e A rainha Margot, Tem um acabamento e um cuidado muito especial. Atingiram uma popularidade no mundo inteiro. No Brasil, tivemos traduções muito malfeitas. Resumiram muito essas obras e massificaram no mau sentido, tiraram o refinamento da narrativa. Antonio Candido tem um texto magnífico sobre O conde Monte Cristo, intitulado Da vingança. O personagem do Conde Monte Cristo é um resumo do herói romântico. É um homem que foi maltratado, injustiçado e consegue dar a volta por cima, ser educado por um padre, assimilar refinamento e sensibilidade, Descobre o tesouro e volta. Tem todo um processo de vingança para culpar, prender e punir. E, no fim, se casa com uma jovem e vai viver em paz. Ele tinha muito dinheiro e poderia usufruir de uma outra maneira. Mas o final é idílico, com a vida pacífica e apaziguada, que eu considero muito interessante.

Os três mosqueteiros parece uma narrativa de aventura despretensiosa e frívola, mas transmite valores. Como Dumas consegue realizar esta passagem?
Tem uma noção de comunidade, os mosqueteiros se juntam em prol de um ideal, defender a rainha e o rei. São os valores mais nobres que se pode ter. Pode ser lido como romance de formação. A história do herói que chega sem dinheiro e se completa como homem amadurecido. E tudo de uma maneira super leve. Pode ler como um romance de aventuras.Mas se você parar e pensar na composição dos personagens ou dos diálogos, verá que vai muito além. Aramis é o mais crédulo. Porthus é o mais hedonista. Athos é o mais preocupado com a ética. Tem um bilhete para o Maquet, em que Dumas anuncia a ideia para a próxima obra que escreveria: serão os três mosqueteiros. Como serão quatro,o sucesso é garantido. Tem outra faceta, a das altas crises existenciais. Os personagens questionam todos os atos e inclusive as relações amorosas. Não é apenas uma aventura frívola de capa e de espada.

Por que ler Alexandre Dumas na era da internet, da velocidade dos meios virtuais e dos seres pós-modernos e pós-humanos?
Eu responderia com o que como dizia o próprio Alexandre Dumas: embaixo de um fraque ainda bate o mesmo coração do que armadura medieval. O que grande apelo é que as narrativas que ele imaginou tratam desses valores que os dias de hoje. Como todos os românticos, tratam da ética, a justiça, a crença em um mundo melhor. A gente pode ter internet, mas as pessoas são as mesmas. As pessoas ficam com receito daquele livro imenso. Mas eu digo a meus alunos: leia um capítulo por dia, pois, no segundo dia, lerá cinco capítulos e vai ficar bravo porque terminou de ler todo o livro. Ele é formador de uma narrativa que funciona até hoje. Basta ligar a Netfix e assistir uma série como Vikings. A gente está muito mais próximo de Dumas do que pensa.

"O sucesso foi um dos aspectos que fez com que a obra de Alexander Dumas fosse relegada a segundo plano. Um panfletista escreveu que não era Dumas o autor dos livros e que ele era uma fábrica de romances"

200
Quantidade aproximada de títulos publicados por Alexandre Dumas

"Dumas dizia: ;Victor Hugo é um pensador, Lamartine é um sonhador e eu sou um vulgarizador. Ele pega as ideias mais sublimes do romantismo e dissemina em uma escala massiva. A crítica diz: se ele vende, então não é bom"

Os três mosqueteiros
Alexandre Dumas

688 páginas/Ed. Zahar

O Conde Montecristo

Alexandre Dumas

1.376 páginas/Ed. Zahar

A rainha Margot
Alexandre Dumas

827 páginas/Ed. Amarilys

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