Diversão e Arte

Mostra no Museu Nacional da República reúne obra de Vasco Araújo

Obra do português Vasco Araújo reflete sobre a repercussão de múltiplas forças nos relacionamentos humanos

Nahima Maciel
postado em 07/02/2017 07:20

Cena de Impero

É preciso estar avisado de que o português Vasco Araújo se debruça sobre a condição humana sem pudores. De que fala de uma violência inerente ao ser humano e, talvez, difícil de ser extinta. Mas que também acredita na arte como instrumento capaz de despertar as consciências. Ou, pelo menos, de provocá-las.Vale a pena, portanto, conferir Potestad, mostra de nove vídeos reunidos pela curadora Maria João Machado no Museu Nacional da República.

A exposição funciona como uma retrospectiva com trabalhos produzidos entre 2001 e 2014 e centrados na temática do poder. ;Não quer dizer que seja só um poder político, é também o poder do amor, um poder da transformação, enfim, como o poder pode nos limitar enquanto seres humanos;, avisa Araújo, cujas obras integram as coleções de instituições como Centre Pompidou e Musée d;Art Moderne (Paris), Museu Reina Sofia (Madri), Fundação de Serralves (Porto) e Museum of Fine Arts de Houston.

Aos 42 anos, Araújo é um dos nomes mais importantes da arte contemporânea portuguesa. É conhecido por obras que mergulham no discurso pós-colonial, na tentativa de entendimento das identidades coletivas e individuais, na observação das relações de poder na sociedade e na história do homem e nas consequências geradas por essa dinâmica. Questões de gênero e raça são constantes, mas é comum haver uma perspectiva histórica na obra do artista.

[SAIBAMAIS]Herdeiro de uma sociedade construída no esforço colonial e suas posteriores implicações, ele sabe que existe aí uma série de questões delicadas e violentas. E é delas que quer falar. Por meio do diálogo com a literatura ; de Homero a Eurípedes ;, com a arquitetura e com a música ; a ópera é citação constante nos vídeos ;, Araújo constrói narrativas calcadas na tentativa de entender como o ser humano constrói suas relações de poder e o que isso acaba por significar quando sedimentado em séculos de história. A arte, ele acredita, pode ser uma fagulha para a percepção. ;Eu digo sempre que o que faço é igual à realidade. A única coisa que faço é torcer essa realidade para que o público possa ver de outro ponto de vista, e esse outro ponto de vista criar um questionamento em quem vê. Se eu conseguir criar esse questionamento e se as pessoas questionarem já é uma vitória enorme; diz.

Entrevista // Vasco Araújo

Vasco Araújo trabalha com a questão da identidade

Poder é um tema que perpassa toda a sua obra. Por que decidiu trabalhar com isso?

O que me interessa realmente é falar sobre a condição humana. Falar sobre o ser humano. E a forma como nós nos construímos na relação com o outro. Essa relação é sempre uma relação de poder. Tanto de nós para com os outros quanto dos outros para nós. É como o efeito de espelho, em que você se constrói e vai ter uma atitude de defesa. E isso já é um dado da sua identidade. Então todo o meu trabalho tem a a ver com isso, a forma como, através da literatura, da ópera o ser humano constrói essa relação com o outro.

É uma relação também de impossibilidade?

Também. Também é uma relação de impossibilidade. Estamos sempre fazendo e acabamos sempre repetindo as mesmas coisas sem nos dar conta, porque há uma impossibilidade sempre. E se não houvesse a impossibilidade, já não interessava.

A arte também é uma relação de poder. Isso também é discutido no trabalho?
A arte é uma relação de poder pelo fato de que os artistas têm o poder de falar sobre coisas e chegar aos outros. Mas não é um poder maligno, é um bom poder. Acredito que a arte não existe só para ser algo para ser apreciado e se dizer se é belo ou se é feio. É também para questionar, para colocar questões. E esse questionamento é realmente o mais importante. Isso sim é um dado de poder porque você está obrigando os outros a pensar na vida, nos acontecimentos, em tudo.

Por que identidades coletivas e individuais, que remetem a questões de raça e gênero, têm destaque na sua obra?

Isso também é um exercício de poder e um exercício de construção do ser humano. Nós também temos que nos identificar com algo. E a mim interessa sempre essa relação com as minorias. E cada um de nós faz parte de uma minoria, mesmo não querendo. As mulheres podem ser uma minoria, se você pensar bem. Ou, por exemplo, o grupo das mulheres gordas, o grupo das mulheres magras, o grupo dos homens carecas, tudo isso são minorias. E tudo isso é uma construção, um código que reservamos para nos identificar, para construir, para nos colocar numa gaveta, numa caixinha. Me interessa muito pensar em como esses grupos agem, como tudo isso acontece.

Isso tudo depende de um contexto e você está inserido em um contexto de um país que tem um passado colonial forte e uma ligação profunda com a escravidão. Como reflete sobre essas questões?

O trabalho que faço sobre o pós-colonialismo é sempre numa perspectiva de como os europeus se relacionaram com os outros, como eles se construíram nessa relação de opressão de poder, de massacres e de exploração dos outros. Os outros aqui são os negros, africanos, escravos. E essa relação, hoje, talvez seja a grande definição do ser humano. Infelizmente, tem esse sentido de horror, mas nós continuamos a perpetuar as mesmas ideias. Só que de outra forma, mais velada. Escondido. Porque depois da Segunda Guerra e o dos Direitos do Homem, já não é permitida uma série de coisas, mas isso deu direito a fazer outras. Por exemplo, talvez nunca tenhamos assistido a tantas manifestações de racismo como agora. Estou falando no mundo inteiro. Gosto de falar no geral porque o colonialismo, quase todos os países fizeram, uns na África, outros na Ásia, outros na América. E essa ideia de invadir e explorar o outro, usar o outro é uma definição também do ser humano. Isso é o que eu queria que meu trabalho nos levasse a questionar: se queremos continuar a fazer esse tipo de ação. Porque, muitas vezes, é uma ação que a gente nem sequer pretende fazer, mas faz porque herdou essa coisa.

Essa herança, você tem esperança de a gente se livrar dela?
Vai demorar muito tempo porque ainda somos os mesmos humanos das tragédias gregas. A gente ainda morre, ama e mata da mesma forma. Só que, agora, temos umas casas melhores, mais tecnologia. Mas os sentimentos são os mesmos. Tudo é igual, a relação com a mãe, com o pai. Claro, há muitas conquistas, as leis dos direitos dos homens são fantásticas, mas quem realmente empreendeu, entranhou essas leis no seu modus operandi de todos os dias? É muito difícil porque são séculos e séculos de herança do comportamento do ser humano. Isso não tem a ver com branco, negro, vermelho, amarelo, não tem a ver se é russo, árabe, europeu. Tem a ver com seres humanos. .

Vídeos comentados pelo artista


Impero ; É sobre uma mulher. O nome dela é Impero, mas também é uma metáfora para o grande império. Ela está enclausurada numa cisterna e fala com umas vozes sobre o exercício do poder. Não é uma coisa bonita, porque o exercício de poder pode ser horrível, mas também pode construir coisas fantásticas, como a arquitetura que aparece ali, um bairro em Roma construído por Mussolini, que é fantástico. Por um lado, o poder pode ser uma coisa muito boa e por outro, uma coisa muito má.

Cena de O JardimO jardim ; Foi filmado no Jardim Tropical, em Lisboa. O Jardim Tropical se chamava, antes da revolução de 21 de abril, o Jardim Colonial. Dentro tem várias estátuas de negros simbolizando as várias raças das 10 colônias portuguesas. Mudaram o nome e não tiraram as estátuas. Agora as estátuas passaram de colonial para tropical. O que fiz foi filmar as estátuas falando umas com as outras e o texto é da Ilíada é da Odisseia de Homero, com essa noção de estrangeiro. Mas uns não entendem aos outros. E, no fim, a única coisa que queriam era comer. Tão simples quanto isso.

Mulheres d;Apolo ; Há um lugar em Lisboa para as pessoas irem dançar. Chama-se Alunos de Apolo. E vão muitas senhoras dançar sozinhas. Você chega e pergunta se querem dançar e elas não querem. Mas o que é estranho é que tem todo um código. As pessoas acham que são prostitutas ou que vão para encontrar um homem. E elas, o que estão a fazer é o último reduto da felicidade. É uma terapia, assim como quem faz meditação. Misturei isso com a história das troianas, que é a história dos gregos que destruíram Troia. E tem todo esse discurso de como os homens trataram as mulheres, como os gregos trataram as troianas, no sentido de que as violaram. Tem toda essa pressão dos homens em relação às mulheres, mas há sempre uma salvação, que é dançar.

Retrato ; São imagens de uma casa com uma série de pinturas, cópias de um pintor fascista da época de Salazar em Portugal, Eduardo Malta. A casa está cheia desses retratos e tem vários objetos de arte. Eles falam de toda uma relação de poder entre homens e mulheres, entre homens e homens, mulheres e mulheres, homens e negros, uma história que não é a oficial, é íntima. Uma coisa que me interessa muito é a relação doméstica, as coisas lá de casa, das quais ninguém fala. Esse é o tema. A escravatura é horrível, mas já existia desde que os seres humanos começaram a se organizar. E aí tem uma coisa que hoje chamamos de colonialismo mas não é, que é a aplicação de um território no qual há uma relação íntima entre essas pessoas que estão dentro da casa trabalhando e sofrem abuso de poder. O abuso não é só as pessoas trabalharem sem receber. Essa relação é muito complicada e me interessa muito porque essa é, talvez, a coisa mais horrível de como o ser humano se mostra.

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