Diversão e Arte

Em livro sobre a crise, Michel Serres propõe reinventar a sociedade

Minoria muito rica e maioria muito pobre são um problema para a humanidade

Nahima Maciel
postado em 15/02/2017 07:30

O filósofo francês Michel Serres encara o Brasil como um microcosmo do mundo, um modelo reduzido do resto do planeta. Assim, o país também está condenado a um retorno ao Antigo Regime, porque é para o tempo do autoritarismo que o mundo caminha hoje, segundo ele. Serres adora o Brasil e já passou um trimestre como professor da Universidade de São Paulo (USP). Mesmo que estejamos no mesmo caminho dos países ricos, um percurso que leva a uma sociedade formada por poucas pessoas muito ricas e muitas pessoas na extrema pobreza, ainda temos o que o filósofo chama de ;promessas humanas;. ;Tenho a impressão que vocês são o concentrado do mundo;, diz.

Integrante da Academia Francesa, autor de mais de 13 livros traduzidos no Brasil, entre eles A Guerra Mundial e O contrato natural, pensador de temas como os efeitos provocados pela internet na sociedade e a relação do homem com a natureza, Serres acaba de lançar no Brasil Tempo de crise. Apropriado para o momento, o pequeno livro, publicado originalmente em 2007, chega agora às livrarias brasileiras com uma reflexão bastante atual.

A crise financeira impôs ao mundo a urgência de se reorganizar, de repensar o futuro e o presente, de questionar se os modelos sociais nos quais a humanidade insiste estão fadados ao insucesso. Para Serres, a desigualdade crescente no mundo gera um exército de jovens desempregados cujo futuro está comprometido. Se os 20% mais ricos detêm 80% das riquezas do planeta, o que resta para os 80%? Aos 86 anos, o filósofo acredita que a natureza humana sempre esteve sujeita a mudanças e que a pobreza pode mudar o rumo do planeta. Em entrevista ao Correio, ele fala sobre o mundo contemporâneo e a crise provocada pela desigualdade social.

Filósofo francês diz que a desigualdade social vai aumentar e desequilibrar a sociedade

O que o levou a escrever Tempo de crise?
Ando tocado pelo fato de que no nosso tempo contemporâneo há coisas que aconteceram que são únicas na história. Quando nasci, havia menos de 2 bilhões de pessoas no mundo. Hoje, estamos quase em 8 bilhões. Durante minha vida, que é breve porque é uma vida humana, a população do mundo dobrou duas vezes. Poucas pessoas podem dizer que, durante sua vida, a demografia mundial se multiplicou a esse ponto. Uma segunda coisa que me toca muito é o alongamento da expectativa de vida. Não sei a quantas anda o Brasil mas, na França e na Europa Ocidental, a esperança de vida deu um salto e foi para 84 anos para as mulheres. E a expectativa de vida mudou tudo, particularmente o regime das fortunas. Se você ler um romance do século 19, você vê pessoas de 30 anos que herdaram fortunas. Hoje, um homem de 84 anos deixa sua fortuna para um filho de 60. Logo, a fortuna está nas mãos dos velhos. Os jovens não têm mais nada e isso interfere na economia mundial.


O senhor também cita a medicina como um fator que ajudou a mudar a configuração do mundo.
A medicina fez progressos gigantes desde a Segunda Guerra. Ela não apenas trata, mas cura. Antes da guerra, não sabíamos curar. A quarta coisa que aconteceu é a revolução digital. São coisas que nunca aconteceram antes na história. Essas novidades fizeram de nosso mundo um mundo tão novo que as pessoas sequer percebem. E é um trabalho do filósofo perceber.


O senhor é otimista? O que acha que vai acontecer? O Google investe bilhões em um projeto para encontrar a fórmula que vai impedir o envelhecimento humano...
A expectativa de vida aumentou radicalmente, mas as pessoas acreditam que as curvas se perpetuam sempre. Que vamos ir a 150, depois 300 anos. Não! É muito raro que as curvas se perpetuem dessa maneira. Acredito que o homem é mortal e ponto final. Acredito que tudo que se diz do homem aumentado é pura publicidade do Silicon Valley. É financiado por Google e Apple, mas não é uma coisa séria. É de uma ingenuidade norte-americana. Um brasileiro não deve se fiar a nesse tipo de coisa.


Mas o Brasil é muito ligado no que vem dos Estados Unidos...
Sim, mas vocês são latinos. E nós, latinos, vocês e nós, deveríamos prestar atenção em não copiar uma cultura que não é a nossa. Parece-me que essa opinião do Google são opiniões quantitativas, não qualitativas. Faz uma grande diferença. Suprimir a morte é um sonho que começou milhares de anos antes de Jesus Cristo.


Qual o futuro possível da humanidade?
É verdade que nosso tempo é comparável às revoluções precedentes que inventaram a escrita, a imprensa e, hoje, o digital. É uma ruptura de civilização. E os problemas que vêm por aí são econômicos. O trabalho vai continuar a existir? Não se tem certeza. A política vai continuar a existir com o digital? O futuro será o que nós fizermos dele? É muito difícil prever porque, em geral, quem prevê sempre é contradito imediatamente pelo que acontece.


Será necessário reinventar a sociedade?
Sim, claro. Por uma simples razão: as instituições que nos governam são instituições que nasceram num momento em que o mundo não era o que se tornou. Essas instituições estão em ruptura com o mundo como ele é hoje.


O senhor disse que não tem certeza de que o trabalho continuará a existir como existe hoje. O que isso quer dizer?
Desde a chegada das novas tecnologias, o digital destruiu muito mais empregos e trabalhos do que criou. Consequentemente, estamos vendo o crescimento do desemprego. Esse crescimento talvez não seja temporário e acabe inscrito na história continuamente. Veja a que ponto as cadeias de produção na indústria foram substituídas por robôs. É impressionante. Quase toda a produção será garantida por máquinas. E boa parte dos serviços foram substituídos por computadores. É possível que o trabalho se reorganize de maneira séria.


E o que fazer dessa massa de desempregados?
Estamos reconstituindo o Antigo Regime. As democracias que conhecemos foram formadas pelo aumento quantitativo da classe média. Atualmente, a classe média está desmoronando e dando origem a muitos novos pobres. A curva que estava inchada está afundando com poucos ricos e muitos miseráveis. E isso é exatamente o Antigo Regime.


O resultado do Brexit, Trump e, talvez, Marine Le Pen (extrema direita francesa) são uma resistência ou uma consequência disso tudo?
Eu disse há pouco que o aumento da expectativa de vida mudou as condições da fortuna e do patrimônio. As pessoas que têm a fortuna, que são os mais velhos, estão tomando o poder. E acho que essa população age como se houvesse um pânico da evolução das coisas. Eles freiam o tanto que podem para evitar o que é, na minha opinião, inevitável. E, de fato, esse movimento de conservadorismo está percorrendo o mundo como uma onda que atravessa tudo. A meu ver, isso foi produzido pelo medo do futuro. O Estado Islâmico é a mesma coisa. Eles lutam para evitar a Primavera Árabe.


E a França de Marine Le Pen, ela já existe?
Isso não é novo. Sempre houve, na França, um partido conservador. Depois a Revolução Francesa houve a restauração, depois Napoleão III. Foi preciso quase um século para reencontrar a República. E há sempre uma proporção de franceses tentados por esse tipo de política. Mas o que me deixa mais tranquilo é que eles não são realmente a maioria. Assim que houve um alerta, quando Chirac e Le Pen disputaram, juntos, a presidência, todo mundo foi votar por Chirac.


Mas o senhor acredita que é o caso agora?
A eleição de Marine Le Pen é possível, mas não é provável. É essa a diferença. Mas posso estar errado, claro.


E o Brasil nisso tudo?
O Brasil é um país grande e eu sempre achei que era um modelo reduzido do mundo inteiro. O que acontece aí é o que acontece no mundo. Vocês também estão no caso da restituição do Antigo Regime, com poucos ricos e muitos pobres. E vocês têm também promessas humanas extraordinárias. Sempre tive a impressão que olhar o Brasil era olhar o mundo, do ponto de vista humano, cultural, político e social. Tenho a impressão que você são o concentrado do mundo.


O senhor diz que os homens são a espécie que mais mudou desde que apareceu na Terra. O que acontece quando uma espécie passa por transformações tão decisivas?
Não tenho certeza que a natureza humana é estável. Nós mudamos muito desde os egípcios, desde os antigos chineses, dos índios da América e de nossas origens africanas. E mudamos muito também desde o século 17 e das grandes navegações. Consequentemente, nossa mudança é quase a definição do ser humano. Não há natureza estável, o ser humano muda muito. Graças à cultura e à história. Somos um animal curioso, um animal de mudanças.

Minoria muito rica e maioria muito pobre são um problema para a humanidade

Tempo de crise
De Michel Serres. Bertrand Brasil, 96 páginas. R$ 27,90

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