O ano era 1979. Sob a égide da ditadura, o general João Baptista Figueiredo acabara de ser escolhido para substituir Ernesto Geisel, militar de igual patente, na Presidência da República. Em Brasília, os dias não eram tão ensolarados. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, a Beija-Flor de Nilópolis venceria o carnaval com o samba-enredo O paraíso da loucura, que num trecho da letra dizia: ;Hoje sou livre, sou criança beija-flor/ Amante da beleza sou um ser especial/ Ô ô ô ô ô ô;.
Mas na capital do país, nem tudo era tão pesado. O beija-flor candango também sabia ser irreverente, como a Sociedade Armorial Patafísica Rusticana, surgida um ano antes e que se popularizara sob o pseudônimo de Pacotão. O ;pequeno; bloco de sujo ; como os de antigamente ; fazia desfilar sua alegria pela contramão das avenidas W3 Norte e W3 Sul cantando a plenos pulmões a Marcha dos Aiatolás, criada por Moacir de Oliveira, Salomon Cytrynovicz e Rubens Artigas: ;Geisel você nos atolou/ O Figueiredo também vai atolar/ Aiatolá, aiatolá/ Venha nos salvar/ Que esse governo já ficou Gagá, gagagaisel;.
Como o aiotalá entrou na sátira? Explica-se: ;Na época, enquanto a ditadura continuava em vigência no Brasil, no Irã, o aiatolá Khomeyni liderava a revolução fundamentalista que derrubou o ditador Xá Rheza Palhevi;, lembra Moacir de Oliveira, o Moa, atual presidente da Aruc. Naquele ano, o anárquico bloco criado por jornalistas ganhou as manchetes dos jornais de todo o país e transformou-se num símbolo icônico da folia de rua brasiliense. Amanhã, em seu 39; desfile, mantendo a conhecida verve, solta a voz para criticar a crise hídrica pela qual o Distrito Federal passa atualmente.
;Vamos para a rua com Banho tcheco, composta por Antônio Jorge Sales, Antônio Carlos Sales, Thayane Sales e Hadaffa Dolbeth;, anuncia José Antônio Filho, o cartunista Joanfi, que, ao lado de Paulão do Varadero, Cicinho Filisteu, Wilson Red e Marcelo Santos, formam o coletivo que dirige o Pacotão atualmente. A letra da marchinha diz: ;Passou-se tanto tempo/ Nossa barragem tinha água até demais/ Por falta de investimento/ O Rollemberg corta água/ E agora faz tcheco, tcheco/ É banho de bacia/ Falta água noite e dia/ Tcheco, tcheco, tcheco...;
;Em abril de 1977, o regime militar, comandado pelo general Ernesto Geisel dava mais uma demonstração de força. Mesmo enfrentando dificuldades políticas, conseguiu aprovar no Congresso Nacional a draconiana reforma do Poder Judiciário. O governo recorreu ao arbitrário AI-5 para fechar a Câmara e o Senado e instituir um conjunto de medidas discricionárias, como a criação dos senadores biônicos;, lembra Moacir de Oliveira.
Segundo ele, o Pacote de Abril, como as medidas ficaram conhecidas, apesar do susto inicial, não foi capaz de conter o crescente descontentamento em relação a ditadura, ;e logo virou motivo de piada entre os brasileiros;. Foi nesse clima, numa tarde de sábado, no verão de 1978, que alguns jornalistas, reunidos para a habitual cervejada no Clube da Imprensa, decidiram fundar um bloco carnavalesco.
Surgia ali a Sociedade Armorial Patafísica Rusticana, o velho e sarcástico Pacotão, que teve como fundadores os jornalistas Cláudio Lysias, Carlos Augusto Gouvêa (Carlão), David Renault, Fernando Lemos, Márcio Varela e Moacir de Oliveira. Ao núcleo original se juntaram posteriormente Ana Lagoa, Alexandre Lobão, Armando Rollemberg, Hélio Doyle, Jaime Sautchuk, Jane Medeiros, João Bosco Rabello, Jorge Luiz de Souza, Lucas Valle, Rubens Artigas, Salomon Cytrynowics (Samuca), Siroba e Wilson Miranda (Brother).
Conversas posteriores, no Bar do Chorão, na 302 Norte, do também jornalista Artur Pedreira ; outro que embarcou na ideia ;, serviram para definir a estreia do bloco no carnaval de 1978; a concentração e o ponto de partida do desfile seria ali naquela quadra, puxado pela bateria da Aruc. A primeira camiseta trazia um desenho de Racsow, então chargista do Correio.
Histórias hilárias
Quase quatro décadas depois essa tradição vem sendo mantida, mas há alguns anos, quem arrasta os foliões é a Banda Podre do Pacotão, sob a regência do maestro Cristiano Bolacha. O que não mudou foi a índole satírica e histriônica dessa aclamada célula da folia candanga. E o que não faltam são histórias (algumas hilárias), criadas em torno dela, que se mantêm vivas na memória de muita gente.
Esta se tornou clássica: no já citado carnaval de 1979, o diretor do Departamento de Turismo, Carlos Black Pereira, propôs financiar o Pacotão desde que desfilasse na passarela oficial, instalada na W3 Sul. Obviamente, a oferta não foi aceita e bloco saiu na contra-mão levando em frente um boneco gigante chamado Charles Preto (uma tradução livre do nome do diretor). O mítico personagem mantêm-se como destaque e símbolo da instituição.
Durante a ditadura, e mesmo depois da redemocratização, era comum agentes disfarçados de foliões, se infiltrarem no bloco para fotografar faixas e quem as conduziam. Houve até casos das que, sob protestos, foram retiradas à força. Já no primeiro desfile uma faixa dizia: ;Der Pacoton Lieben und Khu shey la;. Não queria dizer nada, mas apenas lembrar a origem germânica de Geisel.
Moa revela outro fato. ;Quando o general Figueiredo era presidente, recebemos um recado do SNI (Serviço Nacional de Informação), criação do general Golbery de Couto e Silva) dizendo que não iria impedir a saída do bloco, mas pedindo que as faixas poupassem dona Dulce Figueiredo, a esposa do presidente;.
Da memória de Moa sai mais uma história da saga do Pacotão. ;No governo Sarney, o porta-voz Fernando César Mesquita ameaçou processar Charles Preto, irritado com a camiseta do Pacotão que trazia escrito ;Je vous salue Marli;, parodiando a esposa do presidente. Ele acabara de proibir a exibição no Brasil Je vous salue Marie, filme do cineasta francês Jean-Luc Godard.
Neste carnaval, a história e a irreverência continuam juntas (mas desta vez, sem água)...
Pacotão
O tradicional bloco concentra-se na 302 Norte, amanhã, e terça-feira, a partir das 12h, de onde sai para o desfile pelas avenidas W3 Norte/Sul.
Qual é o melhor de Brasília?
Agora não tem mais jeito: o carnaval é nosso! O brasiliense se apropriou, de vez, da festa de Momo. Toma as ruas da cidade, dança, beija, traveste-se do que bem entende. Segue o trio, cai no samba, no axé, nas marchinhas e ; quem diria ; na música eletrônica. Senhor dos festejos, nada mais justo que vista a fantasia de juiz e eleja o melhor bloco de 2017. O Correio Braziliense formou uma comissão julgadora e contará também com uma enquete popular para entregar um troféu aos quatro escolhidos. Para votar, entre no site www.correiobraziliense.com.br e participe. Que vençam os mais animados!
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