Vera Lúcia Guimarães - Especial para o Correio
postado em 25/02/2017 07:00
Silviano Santiago é um prestidigitador. Sempre foi. Quando escreveu Em liberdade, levou o leitor a acompanhar os passos de Graciliano Ramos pelas ruas do Rio de Janeiro em suas caminhadas e cachacinhas, como se estivesse ao lado de um amigo de carne e osso. Aliás, mais osso do que carne, pois era um homem magro, acabado de sair da prisão... Agora, ele faz o mesmo leitor ver outro homem magro, todo de preto, sinal de um grande sentimento de luto pela mulher, a adorada Carolina, companheira de uma longa vida.
Lá vem ele. Pela estreita Rua Gonçalves Dias, no centro do Rio, um pouco cambaleante, sinal evidente de que não está bem. Dois amigos param a conversa para observá-lo. Um é Carlos de Laet, que anda em direção ao mestre e o apoia como um poste e o leva à farmácia do Rangel, conhecido do mestre, que o socorre em mais uma crise epiléptica.
Silviano nos deu esse presente chamado simplesmente Machado (Companhia das Letras, 2016). Não precisava mesmo acrescentar nenhuma palavra, nem o de Assis do seu sobrenome. Todos sabem quem é ;Machado;, o grande, o genial, o mestre da literatura brasileira e ;mestre de todos nós;. E universal. Quem o leu sabe disso, a exemplo dos prestigiosos críticos norte-americanos Susan Sontag, que o admirou enormemente, ou o ;papa; Edmund Wilson.
Como um mágico, Silviano descortina as cenas de um tempo perdido, levando o leitor a mergulhar na história e acompanhar as personagens. Carlos de Laet nos leva a Minas, onde se encantou com o barroco, ao lado de Olavo Bilac, ambos exilados, por serem críticos dos militares republicanos. E encanta-nos com suas leituras e revelações sobre Flaubert. Que também sofria do grande mal, a epilepsia. Laet fica desolado com a morte do mestre Machado, aquele que ele nunca será, o inimitável. Porque ;eu não era tu;, repete o lamento de Maxime du Camp sobre o amigo Flaubert.
E, hoje, de posse dos cinco volumes da correspondência de Machado, de 1905 a 1908, publicados pela Academia Brasileira de Letras, Silviano aperta-os contra o peito, como se quisesse guardá-los no fundo do coração, tornando as preciosas cartas parte de si mesmo. Assim, está amalgamado a elas, são um só: Machado/Santiago ou Santiago/Machado o narrador duplo, pois Santiago virou personagem. Agora, sim, ;eu era tu;! E Santiago recebe o bastão do mestre no dia 29 de setembro, dia para ser lembrado, pois um se foi (Machado em 1908) e o outro chegou (Santiago em 1936).
Digressões
Chegou para narrar, para fazer suas as palavras daquele que tanto admira. E no vai e vem da narração, com as digressões impostas pelo seu estilo caudaloso, vai mostrando a transformação da cidade imperial em Cidade Maravilhosa, como a nomeou Coelho Neto, em 1908. No ;bota-abaixo; do prefeito Pereira Passos, ajudado pelo engenheiro Paulo de Frontin, o Rio monárquico dos barões se metamorfoseia no Rio republicano dos novos ricos, ávidos por luxo e conforto. Erguem palacetes para evidenciar sua riqueza exterior. Compram o que há de melhor, esbanjam. Sinal dos novos tempos, do vento novo que sopra no país, melhor, no Rio de Janeiro, na mistura de riqueza e pobreza e insegurança, com furtos e roubos ameaçando a população.
E a cidade se apresenta com o contraste de luxo e exclusão social. Belle Époque, Roda da Fortuna, Roda dos Enjeitados. Assim, vamos passeando pelo novo Rio de Janeiro do doutor Miguel Couto, médico de dona Carolina, e agora de Machado, guiados pelo olhar de Santiago, como dissemos, no duplo papel de narrador e personagem. O doutor que curiosamente viu na epilepsia a doença da imitação: o doente é um mímico que repete, sem querer, o amedrontador espetáculo que viu numa convulsão epiléptica. É a doença que vem de fora. Mais uma vez, o inferno são os outros...
Mas a relação mais emocionante é a do mestre Machado com Mário de Alencar, esse sortudo que teve dois pais, ambos grandes: o biológico, José de Alencar, e o espiritual, o próprio Machado, com quem tinha muitas afinidades, até a pior delas, a epilepsia.
E, no décimo e último capítulo, o mágico Santiago tira da manga o quadro Transfiguração, de Rafael, que abre o livro, e emociona o leitor: dá show com a análise profunda e sensível da estampa que chega às mãos do mímico do Cosme Velho, no chalé (alugado) onde vive entre livros de Flaubert e Stendhal, autores de sua admiração. E, nenhuma palavra a mais, para não estragar a surpresa, pois, como disse Machado: ;Há coisas que melhor se dizem calando;... Machado já nasceu clássico.
Verá Lúcia Guimarães é professora de literatura.