"São Paulo tem uma maneira de doer que é particular;, diz Eduardo Brechó, vocalista da banda Aláfia. E é do embate entre amor e ódio, entre ode e crítica que nasceu o terceiro disco do grupo, SP não é sopa. Rap, funk, MPB? Assim como São Paulo, a Aláfia é difícil de se encaixar em rótulos, mas ferve em poesia e sonoridade no desejo de cantar a cidade.
A existência de tantas vozes cantando SP, de tantos discos e de canções sobre a metrópole de forma alguma intimidaram ou foram um peso para o grupo, garante Brechó. ;Não foi necessário pensar dessa forma. Cada olhar é inédito, sobretudo, quando se trata de um organismo cujo movimento seja tão intenso e o fluxo tão cabuloso quanto o de São Paulo;, acredita.
As canções sobre a cidade foram, na verdade, inspiração, principalmente aquelas que falam de particularidades de São Paulo. ;Creio que as canções sobre a cidade nos inspiram. Principalmente, aquelas que falam indiretamente de São Paulo, aquelas que lidam com os microcosmos aqui presentes e não assumem a cidade toda como tema.;
Em SP não é sopa, não há romantismo na visão da cidade. As belezas são cantadas ao mesmo tempo em que as mazelas aparecem nas letras do grupo. ;Creio que seja uma relação não romantizada nem idealizada. Os conflitos apresentados se dão pela estrutura e mentalidade do nosso país com a história racista e o abismo social;, acredita.
Além de ter uma ;maneira de doer particular;, o vocalista acredita que São Paulo também não permite, pelo tamanho, que suas características passem despercebidas. ;Suas dimensões não permitem que os problemas sejam pequenos. Nada pode ser pequeno. O ciclo é interessante porque a cidade acolhe e muitos conflitos nascem dessa diversidade fértil;, opina.
Apesar de a banda sempre ser lembrada por promover a mistura de vários gêneros em seus arranjos, Brechó refuta que isso seja uma preocupação do grupo. ;O ideal é que a mistura não seja fragmentada. Não misturamos gêneros pensando dessa maneira. Arranjamos a serviço da canção e da nossa sonoridade, se há mistura, que seja espontânea e natural. Se o que fizemos não tiver rótulo, sem problema também;, explica.
O álbum conta com algumas participações especiais, como as vocalistas trans Raquel Virgínia e Assucena, da banda As Bahias e A Cozinha Mineira na faixa Mano e mona. ;A princípio seriam mais participações. Cada região da cidade teria um artista convidado. Era isso. Eu pensei nos convidados a partir das regiões da cidade. Pessoas que tivessem ligação com estes bairros e/ou temas;, conta.
Em Brasília
Se para a Aláfia, a dureza de São Paulo é inspiração direta para as canções, o brasiliense João Pedreira absorve Brasília de uma maneira poética e mais sutil. ;Aqui coexiste com a natureza o meio urbano bucólico e melancólico e talvez tenhamos mais a oportunidade de observar e admirar os monumentos e as construções do que propriamente nos relacionarmos com as pessoas nas ruas;, filosofa.
São essas reflexões que inspiram o músico e ator, que se lança agora de vez no projeto musical com os EPs Ser e estar e Cantou o galo. ;Você se relaciona muito mais com os espaços do que com as pessoas, então Brasília me faz enxergar poesia;, explica.
Para Pedreira, a cidade passa por um momento de afirmação cultural e de revisão de conceitos cristalizados. ;O caminhar da cultura candanga tem sido plural, no sentido de desconstruir conceitos primários estabelecidos sobre a capital, como ser somente uma cidade de funcionários públicos ou somente a cidade do rock;, acredita.
O som produzido por Pedreira mistura elementos da cultura brasileira, da presença constante do violão a recursos mais processados. A influência, conta, vem da própria produção brasileira. ;O que me encanta e estimula mais é o que foi produzido entre 1966 e 1978, quando os movimentos de contracultura estavam se posicionando e questionando imposições governamentais e comportamentos sociais, tradições e convenções;, aponta.
Ator, Pedreira vê a união entre música e teatro como naturais e os enxerga como complemento. ;Eu vejo o teatro e a música como artes intrínsecas uma à outra. A imagem, portanto, é som. As duas não só se unem e se apoiam, como fazem parte da constituição uma da outra;, acredita.
Por essas razões, a performance também é uma característica importante para o trabalho de Pedreira. ;Ela é uma vertente também teatral, em transe com a produção musical, que não se limita a uma comunicação apenas sonora, mas multissensorial e sinestésica;, reflete.
Três perguntas // Eduardo Brechó
Vocês falam de temas sociais, gêneros, questões urgentes... É importante trazer essas questões para a arte, para o centro dos holofotes?
É natural falarmos desses assuntos pelos cidadãos que somos. Independentemente do nosso ofício, cremos que todos os que aqui vivem têm funções político-ideológicas e procuramos nos posicionar.
Como veem a produção musical contemporânea? Sentem-se inseridos em algum movimento, alguma geração?
Estamos em processo, nos adequando ainda. Depois, quem sabe, alguém forje um movimento. Sinto que somos frutos do hip hop ; que para mim hoje já é uma matriz, uma raiz que terá a própria genealogia, como o jazz ou o samba.
Dentro disso tudo, o que os influencia?
Tudo nos influencia. O que escolhemos ouvir e o que ouvimos sem escolher. A rua é a maior influência desse disco.
SP não é sopa
Aláfia. Independente 14 faixas. Disponível nas plataformas digitais.
Três perguntas // João Pedreira
Em Brasília, ainda somos muito caretas, com lei do silêncio, impedimentos etc. Como vê isso?
Totalmente! Brasília é uma cidade que pulsa caretice! (risos). Esse comportamento corresponde aos primários conceitos estabelecidos sobre a capital, como ser uma cidade quieta, pacata, de pouco movimento e som nas ruas, os comércios, bares e restaurantes fecharem cedo, a disposição arquitetônica setorial causar um senso separatista e de pouca comunhão entre os cidadãos. A arte naturalmente rompe com esse enquadramento de ordem porque arte é comunicação, arte é expressão e diálogo, arte é fronteira e não cabe dentro de um quadrado.
Nessa mistura, quais são as influências para esse trabalho? O que te inspira?
Eu me sinto bastante inspirado por nomes da música brasileira como Tom Zé, Caetano Veloso, Moraes Moreira e Lenine. Da música internacional, me contemplam as bandas The Doors, Pink Floyd e mais contemporânea, a banda Fat Freddys Drop.
Como você vê a chamada nova MPB? Sente-se dentro ou representado por essa geração?
Eu vejo a nova MPB bastante diversificada, ainda mais por conta dos movimentos de produção independente, a internet e as formas de proliferar conteúdo. É difícil, portanto, saber se me encaixo no que seria a nova MPB, mas me sinto integrado de alguma forma porque sou brasileiro e produzo música autêntica brasileira, mesmo que poucas pessoas me conheçam ainda. Eu me sinto representado por artistas como Criolo, Baiana System, Liniker e Os Caramelows, As Bahias e a Cozinha Mineira e Cantigas Boleráveis (DF).
Cantou o galo
João Pedreira. Independente. 3 faixas. Disponível no YouTube e no SoundCloud.