Isabella de Andrade - Especial para o Correio
postado em 01/03/2017 07:30
Sendo uma das escritoras mais aclamadas da literatura brasileira e importante expoente para a representação literária da mulher, Clarice Lispector desperta encanto e inspiração em leitores das mais diversas idades. Conhecida por trabalhar de maneira profunda as características psicológicas de seus personagens, Clarice tinha predileção por protagonistas femininas, criadas com a riqueza de seus sentimentos, dúvidas e vivências. A inovação literária e o mergulho no universo das mulheres foi, e ainda é, ponto de inspiração para peças de teatro, estudos acadêmicos, livros e até espetáculos de dança. É o caso de Clarice Lispector em Movimentos, criação do grupo Azzo de dança contemporânea.
Cíntia Schwantes é professora no curso de literatura da Universidade de Brasília e tem como foco de pesquisa romances de formação e estudos de gênero, são estes seus principais interesses na obra de Clarice. A professora lembra que a autora trabalha muito com epifanias em suas obras, além de se debruçar com profundidade e delicadeza nas questões vividas por mulheres. ;Por ser uma das poucas escritoras mulheres a alcançar reconhecimento irrestrito na academia, ela tem um papel muito importante na constituição de um cânone da literatura de autoria feminina;, destaca.
Ao se debruçar sobre o universo feminino de forma minuciosa e conscienciosa, Clarice criou personagens femininas complexas. Através de seu estilo de escrita pessoal, ela estabeleceu um padrão mais complexo para a criação de personagens femininas, que a partir de então, seriam mostradas com seus anseios e profundidades. ;Creio que a busca por leveza é algo que povoa a vida da maior parte das pessoas. E ela pode ser encontrada na obra de Clarice, desde os romances até as crônicas;, afirma Schwantes.
Clarice Lispector em movimentos
A coreografa do espetáculo de dança contemporânea, Jana Marques, conta que sempre busca temas que lhe despertem sensações para produzir seus trabalhos e gosta de criar em cima de textos e poesias. A obra de Clarice Lispector lhe despertou interesse por ser permeada por sentimentos e textos viscerais. No primeiro ato, os bailarinos entram no palco para mostrar através do corpo um resumo dos principais pontos da obra da escritora e de seu mergulho no universo feminino.
;Eu me inspirei nos romances Perto do coração selvagem e Água viva. Não retrato nenhum dos romances, mas me inspiro neles para mostrar esse lado íntimo das mulheres em busca de seus desejos, vontades, anseios;, afirma. A ideia é reviver nos palcos o delicado e brutal universo escrito pela autora.
Os bailarinos também tiveram que conhecer mais o universo de Clarice, pesquisar sua obra e encontrar trechos favoritos para inspirar o trabalho no palco. Jana Marques lembra que escolheu a autora por sua importância no que se refere às mulheres de seu tempo e até os dias atuais. ;Ela escreveu para mulheres em uma época que elas não tinham voz, viviam sob um comportamento ditado por uma sociedade patriarcal. Clarice descreveu os comportamentos mais íntimos daquelas mulheres e seus desejos reprimidos;. A autora teria sido, desta maneira, uma porta-voz para tantas vozes femininas silenciadas em sua época.
Perto do coração selvagem
Marília Florindo (29) se divide entre diferentes profissões que envolvem as palavras, é tradutora, professora, estudante e escritora. Quando criança, leu o conto Felicidade clandestina e sentiu que a obra lhe marcou. Marília lembra que Clarice fala de pensamentos e sentimentos íntimos e seu encanto pela obra da autora vem justamente dessa escrita em forma de fluxo de consciência. ;É como estar dentro do pensamento de alguém, é muito interessante e sedutor. Muitos dos livros dela não têm histórias convencionais, com início, meio e fim;. O aprendizado de ler com outros olhos, com menos pressa e ansiedade, transformou sua vivência como pessoa e como leitora.
Em seu blog pessoal, que ganhou o nome de Livros florindo, a estudante busca inspiração nos autores que admira, enquanto inicia seus estudos de gênero em literatura. ;O aspecto da representação feminina tem me chamado atenção nas obras de Clarice. Ela tenta retratar vários tipos diferentes de mulheres: desde mulheres de classes mais baixas, sem estudo, até artistas, mulheres de classe média alta;, destaca.
Com personagens que caminham entre mundos diversos, Lispector contribuiu para que personagens femininas tivessem mais protagonismo na literatura nacional. ;As mulheres são a alma da obra da Clarice;, lembra Marília. A estudante se identifica com as angústias universais expressadas por suas personagens, seus medos e incertezas.
Mayara Moreira é professora de filosofia na Secretaria de Educação do Distrito Federal e também grande admiradora dos escritos de Lispector. O que mais lhe desperta interesse na obra são os questionamentos existencialistas dos personagens e a observação de coisas simples da vida, que podem se tornar, ao mesmo tempo, complexas e encantadoras. ;Sempre parece que ela fala de nós, mesmo que não nos conheça. Todos os livros que li de Clarice mexeram comigo, com a minha forma de pensar e ver o mundo;, afirma. Atualmente, a professora leva um pouco do que leu para a sala de aula, levantando questões relacionadas ao amor, ao tempo e ao ser humano.
Para Mayara, a importância da autora está, principalmente, na representatividade feminina de seus livros e na força expressiva de seus escritos, que se destacam sempre com um olhar sensível, reflexivo e atento. A paixão de GH se destaca como seu livro de cabeceira e suas páginas acompanham a leitora em seus momentos mais introspectivos, como uma terapeuta amiga. ;Eu consigo me sentir como uma amiga dela através da leitura, como alguém que eu conheço e posso conversar. O que encontro em seus livros me influencia, me marca e me ajuda a chorar ou sorrir;, destaca.
O nome de Clarice Lispector permanece lembrado como um dos grandes representantes de nossa literatura, sendo reconhecido e estudado em diversos países. Em 1; de março biografia da autora será relançada, pela Companhia das Letas trazendo manuscritos raros. O livro escrito por Benjamim Moser trará imagens raras e manuscritos recentemente comprados pelo biógrafo, mostrando que a obra de Clarice pode ser sempre expandida e reconstruída em seus aspectos literários.
Serviço
Espetáculo ; Clarice Lispector em Movimentos, dias 3 e 4 de março (sexta e sábado), às 20h e 5 (domingo), às 19h; no Teatro da Caixa Cultural Brasília (Setor Bancário Sul Qd. 4). Os ingressos custam R$ 10 (meia-entrada) e R$ 20 (inteira) e a classificação indicativa é 14 anos. A segunda temporada acontece nos dias 1 e 2 de abril, respectivamente às 19h e 20, no Teatro Sesc Garagem (713/913 sul).
Um retrato feminino ; as mulheres respondem
Como as mulheres são retratadas na obra de Clarice Lispector? O que fica em evidência?
Clarice fala da angústia de existir, e especialmente de um ponto de vista feminino. Suas personagens femininas estão sempre em algum momento crucial de suas vidas e precisam se redefinir, o que pode acontecer como uma libertação, ou um suicídio, ou um enlouquecimento. De alguma forma, elas respondem ao imponderável com as armas que tem. Ao perceberem que são definidas por suas relações com outras pessoas, e não como indivíduos, elas precisam decidir se darão um novo rumo a suas vidas ou se se conformarão com o que é esperado delas, e suas decisões costumam ter um que de heroísmo.
(Cíntia Shwantes)
As mulheres que a Clarice retrata são mulheres do cotidiano e com profundas questões existenciais, tirando a Macabeia que eu acho uma de suas personagens mais rasas, mesmo sendo um livro muito conhecido. Mas no geral, ficam ressaltados os pensamentos, questionamentos e o olhar dessas mulheres e não sobre só o feminino e amores, mas sobre elas mesmas e esse mundo que elas percebem ao seu redor. Ela mostra as mulheres de dentro, independente da vida que essas personagens levem nos livros, como a vida fútil e rica de GH, por exemplo, mas o que GH pensa? Sobre ela, sobre o mundo, sobre sua empregada? E principalmente sobra a vida.
(Mayara Moreira)
Como leitora, eu vejo que Clarice busca mostrar uma humanidade inerente a todas essas mulheres que ela retrata: a mulher pobre e sem estudo, a menina, a artista, a dona de casa. Todas essas mulheres, muitas vezes retratadas na literatura apenas como secundárias e seres praticamente decorativos, na obra da Clarice ganham densidade, profundidade, importância suprema. Elas têm pensamentos sublimes, epifanias. Esses aspectos, humanidade, profundidade, são ressaltados e valorizados pela autora e nos justificam enquanto mulheres e enquanto seres humanos - aspectos que a nós tanto foram negados e ainda são para boa parte da população feminina brasileira e mundial. Assim, voltamos à questão da importância de mulheres serem retratadas dessa forma na literatura. É importante que a arte tente de alguma forma mudar realidades e despertar questionamentos.
(Marília Florindo)
;Suponho que me entender não seja uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Toca ou não toca;, Clarice Lispector.
(Um dos trechos escolhidos pela coreografa Jana Marques para definir a escritora)