Diversão e Arte

Livro reeditado reconstitui a trajetória de Realidade

O veículo que tinha como alvo mais otimista alcançar 100 mil exemplares chegou a vender mais de meio milhão

Lourenço Cazarré - Especial para o Correio
postado em 04/03/2017 07:30

Pelé coroado rei na capa depois do tricampeonato mundial

Realidade mostrou ser um nome adequado ; entre uma dezena de opções ; para aquela revista que, nos seus primeiros três anos de existência, serviu para mostrar o Brasil aos brasileiros.

Pelos meados de 1960, quando Realidade começou a circular, o Brasil não tinha chegado aos ;90 milhões em ação; cantados na marchinha ufanista do tricampeonato mundial de futebol.

Quando foi pela primeira vez às bancas, no começo de 1966, a revista da família Civita defrontou-se com adversários de respeito: Cruzeiro, Manchete e Fatos e Fotos.

Mesmo assim, só com distribuição em banca, em pouco tempo o veículo que tinha como alvo mais otimista alcançar 100 mil exemplares chegou a vender mais de meio milhão. O sucesso do mensário que fazia reportagens exaustivas sobre temas polêmicos (racismo, homossexualidade, violência, os papéis do homem, da mulher e da criança), escritas em estilo literário e acompanhadas de belas fotos, foi estrondoso e instantâneo.

Para contar a primeira fase (1966/1968) dessa revista que virou de cabeça para baixo o modo de fazer jornalismo no Brasil modorrento dos 1960, Mylton Severiano da Silva, copidesque dos anos pioneiros, foi atrás de seus parceiros de aventura.

Entrevistou um magote deles. A todos perguntou: qual o motivo de tanto êxito se aquela era uma revista feita por uma penca de malucos, quase todos nascidos em famílias humildes, quase todos com menos de 30 anos, quase todos sem diploma de curso superior?

Essa busca, que não obteve resposta única, rendeu um livro de 318 páginas intitulado Realidade ; História da revista que virou uma lenda (Editora Insular).

O material mais consistente do livro foi dado ao autor por Paulo Patarra, fundador da revista e seu editor até meados de 1968. Patarra havia escrito um diário sobre os primeiros 33 números, mas, num acesso de autocrítica, jogou fora metade dos seus registros. Restaram, no entanto, comentários preciosos sobre os 16 capítulos iniciais.

O livro avança no fluxo aparentemente incerto de uma prosa de boteco. Uma história puxa outra. O título de uma reportagem famosa remete a uma interessante história de bastidor sobre como aquele texto foi escrito ou sobre como aquela foto foi obtida.

Cartas subversivas
Paulo Patarra dava muito valor às cartas dos leitores. Exigia que as melhores fossem publicadas e que as demais fossem respondidas. Havia uma pessoa encarregada desse trabalho. Certo dia, o editor esbarra em uma pilha de cartas a serem despachadas. Estranha que sejam tão pesadas. Abre várias delas. Constata que o redator não obedecera a orientação de escrever apenas uma lauda abordando só o ponto tocado pelo leitor fiel. Não. As cartas tinham até quatro páginas e defendiam a luta armada contra o governo militar. O próprio Patarra conta o desenlace: ;Mostrei as cartas para ele, xinguei e ordenei que escrevesse uma última carta ali: a de demissão. Anos depois soube que tinha sido preso e torturado, e estava em uma cadeira de rodas. Nunca soube quantas cartas assinei pregando a guerrilha. Uma delas poderia ter chegado aos tais órgãos de segurança. O que abreviaria a vida da revista. E a minha. Talvez nem estivesse vivo para contar essa história;.

Espionagem
Outra história de bastidor envolve algo muito em moda nos anos de guerra fria ; espionagem. Patarra percebe que uma das revistas adversárias estava publicando, antecipadamente, reportagens que sairiam em Realidade. Na época, a complicadíssima tarefa de imprimir uma revista daquele porte exigia que cadernos fossem impressos com antecedência.

O que fez Patarra? Remeteu à gráfica uma capa-armadilha com os títulos de várias falsas reportagens. Duas dessas reportagens-iscas saíram na revista concorrente. Escreve Mylton Severiano: ;A espiã era Manchete. Alguém devia estar levando propina para espionar. Alguém da gráfica, onde funcionários tinham vindo do Rio, das oficinas da Bloch;.

Ao escrever um editorial sobre as primeiras doze capas de Realidade, Patarra quis registrar o nome da empresa adversária, mas Victor Civita pediu-lhe que não o fizesse: ;Não se pode colecionar inimigos. Basta os que já temos;.

Patada e curativo
A revista equilibrava-se em um delicado fio de arame estendido sobre o abismo. O abismo lá embaixo era o governo policialesco, a ditadura. Para sobreviver, o astucioso Patarra dava - como diz o matuto - uma no cravo e uma na ferradura. Aliás, muitas vezes martelava duas no cravo e apenas uma na ferradura. Ou seja, entre duas matérias palatáveis ao regime, ou até mesmo simpáticas a ele, vinha um coice. No governo ou no seu principal sustentáculo, a igreja católica.

Invertendo essa lógica, no seu número 2, Realidade tascou duas na ferradura e uma no cravo. Entre dois textos fortíssimos para aquele tempo careta, um que tratava da pílula anticoncepcional e outro que abordava criticamente a guerra do Vietnã, foi colocado um amaciador: ;Feliz Aniversário, seu Artur;, retrato matreiro do general Costa e Silva, que viria a ser o sucessor de Castelo Branco.

Registra Myltainho: ;A foto de abertura tinha um quê de puxa-saquismo de ditadura bananeira com uma fileira de generais se apertando no beija-mão do futuro presidente da República;.

Imprevisível
No capítulo ;Uma patada ali, um curativo aqui;, o autor trata do número da revista que tinha uma manchete provocativa: ;Antiamericanismo;. Para examinar tema tão sensível em terreiro comandado por inimigos de Moscou a revista chamou um direitista de carteirinha. Carlos Lacerda ensinava que nossa repulsa aos americanos só começara após a Segunda Guerra Mundial porque, antes, a inimiga era a Inglaterra, que detinha nossa dívida.

Paulo Patarra escreve sobre Lacerda, que conhecera quando governador da Guanabara: ;Passei um dia lá a serviço do Il Messagero, de Roma. Era competente, encantador, malcriado, imprevisível. Corriam histórias sobre sua presença de espírito na Câmara. Como a do adversário que, irritado com suas réplicas, disparou: ;Vossa Excelência é um purgante;. ;E Vossa Excelência é o resultado;, devolveu Lacerda na bucha;.

Vendendo pornografia
No começo de 1967, um número especial da revista é apreendido pelos juízes de Menores de São Paulo e do Rio de Janeiro. Motivo: fotos de um parto. Os jornalistas haviam previsto aquela possibilidade. Discutiram acaloradamente sobre a foto de abertura da matéria. Seria a da parteira já com o bebê nas mãos ou seria a foto belíssima de um bebê com metade do corpo ainda dentro da mãe - de pernas abertas ; sendo puxado pela parteira? Venceu a menos chocante, mas, mesmo assim, a revista foi recolhida. Virou um caso que o cronista Stanislaw Ponte Preta registrou no seu Febeapá - Festival da besteira que assola o país.

Uma indignada leitora paulista escreveu à revista: ;Estão vendendo pornografia, mas isso vai acabar. Palmas para os senhores Juízes de Menores que saíram em defesa da Moral brasileira;.

Inquietações
Realidade teve muitos outros embates. Perdeu um deles contra o Poder Judiciário. Na verdade, acovardou-se. Ou acautelou-se. No seu número 5, a revista apresenta - em uma reportagem intitulada ;A juventude diante do sexo; - o resultado de pesquisa que fizera a junto a mil jovens do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Trechos da reportagem:
;Os resultados são de inquietar: 23% desconhecem que o homem liberta milhões de espermatozoides em cada relação sexual.; ;É alto o número dos rapazes que pensam, ou suspeitam, que haja perigo para a saúde em manter relações com uma mulher durante esse período (menstrual).;

Ao fim, a revista anuncia que outros dados obtidos pela pesquisa serão publicados no número seguinte. Não foram. O Juiz de Menores do Rio de Janeiro ameaçou apreender a edição. Realidade recuou.


500 MIL

Tiragem da revista Realidade por edição nos tempos no auge do prestígio

10 anos
A revista Realidade circulou e 1966 a 1976

"A revista equilibrava-se em um delicado fio de arame estendido sobre o abismo. O abismo lá embaixo era o da ditadura militar"

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