Desde que a Academia Sueca anunciou que Bob Dylan era o vencedor do Nobel de Literatura de 2016, o nome do cantor e compositor americano não sai dos holofotes. Cultuada com fervor por muita gente, a obra de Dylan, por si, sempre teve forças para se manter atual, mas é fato que o prêmio deu um fôlego comercial maior para tudo o que o ícone da música e da cultura americana produziu.
Um exemplo? Uma das maiores pirações de Dylan, o livro Tarântula, ficção estranha que mistura prosa e poesia, havia sido publicado no Brasil apenas em 1986, em uma edição da Brasiliense, com tradução de Paulo Henriques Britto. O mais recente boom do cantor trouxe a obra de volta para as estantes das livrarias do país e faz a alegria dos fãs, que antes precisavam se digladiar para encontrar algum raro exemplar da primeira edição brasileira.
Escrito em 1966, Tarântula agora ganhou uma edição pela Planeta, com prefácio original dos editores americanos e um texto de apresentação, escrito exclusivamente para esta versão, pelo escritor português Valter Hugo Mãe. A tradução também é nova e foi produzida pelo jornalista e tradutor Rogério Galindo.
Com os dois pés no absurdo, o livro de Dylan não foi muito aceito pelos críticos da época. A maioria deles não aprovou o estilo nonsense e inventivo do compositor. Quem defendeu a obra, no entanto, como o crítico americano Mark Spitzer, foi enfático em apontar a qualidade do autor e relacioná-lo com autores como Rimbaud e James Joyce.
Enquanto Dylan não tinha certeza se lançava o livro, trechos foram divulgados por jornais e cópias em xerox circularam pela mão dos fãs. Os advogados do cantor chegaram a entrar na Justiça contra a divulgação não autorizada do texto, mas, por fim, Dylan acabou decidindo publicá-lo.
Mesmo com as críticas e com a complexidade da linguagem, Tarântula tornou-se um objeto cultuado pelos admiradores do cantor e ficou marcado também por ser o único livro ficcional escrito por Dylan. As outras obras assinadas por ele trazem suas letras e poemas; há também Crônicas, uma autobiografia.
Em Tarântula, aparece forte também a relação de Dylan com o movimento beat (ele sempre se disse influenciado por Jack Kerouac, autor de On the road) e com a contracultura americana.
A dimensão política relacionada ao movimento de contracultura sempre esteve presente na obra de Dylan, seja na literária, seja na musical. ;Ele estava no olho do furacão de todo aquele movimento político e contracultural das décadas de 1950 e 1960, tudo que estava surgindo muito forte nos Estados Unidos, a luta pelos direitos individuais, etc.
Mas Dylan tinha uma maneira diferente de se engajar, ele não abria mão do critério poético, isso também gerava dificuldades de aceitação. A mensagem política não é explícita, ele não abre mão do caráter literário;, explica o doutor em literatura, professor da Universidade Federal Fluminense e autor de um ensaio sobre a poesia de Dylan, Adalberto Müller.
Para o professor, todo o reconhecimento em torno de Dylan, principalmente com o Nobel, é importante para a valorização de compositores que dialogam com a tradição literária e é fundamental para a própria literatura. ;O que Dylan e outros compositores fazem é uma maneira de levar a alta literatura às massas. É importante para a canção pop, mas mais ainda para reconhecer esse espaço onde a literatura se realiza.;
O que vem por aí
No fim de março, Dylan lançará o primeiro álbum depois do anúncio do Nobel. Em Triplicate, o cantor apresentará 30 versões de clássicos da música norte-americana.
Segundo o site oficial do cantor, o disco ;mostra os talentos únicos e muito elogiados de Dylan como vocalista, arranjador e líder de banda em 30 composições de alguns dos escritores de canções mais louvados e influentes;.
No disco estarão canções como Once upon a time, de Charles Strouse e Lee Adams; As time goes by, de Harold Hupfield; Stormy weather, de Harold Arlen e Ted Koehler; e The best is yet to come, de Cy Coleman e Carolyn Leigh.
Triplicate foi divido em três CDs: Til the sun goes down, Devil dolls e Comin; home late, cada um com 10 canções. O álbum vai ser o primeiro triplo da carreira do cantor e compositor.
Em 2016, Dylan lançou Fallen angels, em que reinterpreta canções que se tornaram clássicos na voz de Frank Sinatra.
No cinema
O clássico documentário sobre o cantor No direction home, dirigido por Martin Scorsese, é outra obra relacionada a Dylan relançada. O longa mostra as primeiras fases da carreira de Dylan na década de 1960.
A nova edição traz cenas estendidas e bônus, com mais de duas horas de material inédito. Entre as novidades estão depoimentos de músicos como Dave Van Ronk, Liam Clancy e uma entrevista exclusiva com Scorsese sobre a produção do filme.
Trecho
Tarântula (Bob Dylan)
Deixa eu te contar uma coisa sobre a Justine ; a Ruthy & o Zonk ; nenhum deles entendia o outro nem de longe ; a Justine ; ela saiu pra fazer parte de uma banda de rock;n roll & a Ruthy ; ela decidiu brigar com galos profissionalmente & da última vez que eu ouvi falar dele, o Zonk estava trabalhando no distrito do vestuário... e todos eles viveram felizes para sempre
No lugar em que eu moro agora, a única coisa que faz
o bairro seguir em frente é a tradição ; como você pode
imaginar ; não serve pra muita coisa ; tudo
à minha volta apodrece... não sei há quanto tempo isso
tem acontecido, mas se continuar desse jeito, logo
vou ser um homem velho ; & eu só tenho 15 anos ; o único
emprego por aqui é na mineração - mas jesus, quem quer
ser um mineiro... eu me recuso a ser parte de uma
morte tão rasa ; todo mundo fala da idade
média como se aquilo fosse realmente na idade média ;
vou fazer o que for pra sair daqui ; minha mente
está descendo rio abaixo ; eu venderia minha
alma pro elefante ; eu enganaria a esfinge ;
eu mentiria pro conquistador... embora você possa
me entender mal, eu chegaria inclusive a
assinar um contrato com o demônio... por favor
pare de mandar relógios de pêndulo ; chega de
livros ou de cestas de presentes... se você vai
me mandar algo, me mande uma chave ; hei de
achar a porta onde ela se encaixa, mesmo que leve
o resto da minha vida
teu amigo,
Amigo
Tarântula
Bob Dylan. Planeta. 136 páginas. R$ 36,90.
No direction home
Martin Scorsese. Universal Music. 363 minutos. Não recomendado para menores de 12 anos. R$ 47,90.