Darcy Ribeiro gostava de repetir que só se faz sábios com sábios. Com essa mira, ele trouxe mais de 200 intelectuais brasileiros brilhantes para formular e instaurar o projeto original da Universidade de Brasília, na década de 1960. E entre eles estava o crítico e professor Paulo Emílio Salles Gomes. Ele criou o primeiro curso de cinema em uma universidade brasileira. Ficou pouco tempo em Brasília, mas sua curta passagem pela cidade foi extremamente fecunda, confirmando a convicção de Darcy Ribeiro. As sementes que Paulo Emílio plantou no chão árido do planalto germinaram, floresceram e frutificaram.
Em 1965, ele criou a Semana do Cinema Brasileiro que, dois anos depois, se transformaria no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais importante e longevo evento cultural da cidade. O projeto do curso de cinema seria retomado por Vladimir Carvalho ,nos anos 1970 e 1980. Com isso, foram criadas as condições para a invenção de um cinema brasiliense. A coletânea Uma situação colonial, de Paulo Emílio Salles Gomes (Ed. Cia das Letras), organizada por Carlos Augusto Calil, reconstitui parte da experiência brasiliana do crítico e a insere no contexto mais amplo dos embates travados para a afirmação do cinema brasileiro moderno.
Atualmente, a crítica é um gênero rebaixado para a terceira divisão dos produtos do mercado da cultura. Mas ela teve importância crucial na formulação do Cinema Novo, com as intervenções de Glauber Rocha, Walter Silveira e Paulo Emílio. A crítica não estava dissociada da criação; a criação emanava da crítica. Ela complementava, ampliava e amplificava o olhar sobre as obras.
Paulo Emílio tinha uma personalidade magnética, carismática e fascinante. Ninguém ficava imune à sua paixão pelo cinema. Ele não era apenas um crítico; era um escritor de cinema. Conseguia aliar, como raros, acuidade, erudição, clareza e leveza. Mesmo quando defende teses, ele jamais é abstrato; discorre com imagens muito vívidas.
O interessante é que Paulo Emílio começou na condição de consumidor sofisticado da alta cultura europeia e norte-americana e, em seguida, passou por uma transformação radical e se dedicou a pensar na singularidade de um cinema do Terceiro Mundo sob as condições do colonialismo. E, neste sentido, a coletânea reúne textos esclarecedores sobre a posição de Paulo Emílio: ;O cinema é o centro da minha vida profissional, mas sou cada vez mais indiferente ao filme estrangeiro;. E, em outro texto, ele provoca: ;Em suma, emana da análise de um mau filme brasileiro uma alegria de entendimento que o consumo da Arte de um Bergman, por exemplo, não proporciona a um espectador brasileiro;.
É claro que as afirmações de Paulo Emílio precisam ser contextualizadas historicamente para um leitor dos dias de hoje. Não se trata de maneira alguma de xenofobia. Paulo Emílio era um homem extremamente culto e cosmopolita, morou na França e escreveu a melhor biografia sobre o diretor francês Jean Vigo. A radicalização dele tinha em mira a criação de um cinema brasileiro moderno, uma espécie de versão audiovisual da Semana de Arte Moderna de 1922, quatro décadas mais tarde. No entanto, a crítica sobre a esterilidade do mero consumo da arte internacional permanece válida no mundo pós-moderno.
Trechos
;O povo reunido na Estação Rodoviária, a arena provisória dos grandes espetáculos, para assistir ao desfile da Escola do Salgueiro, ou num estádio improvisado para admirar Pelé, composto em proporções equilibradas de nortistas, nordestinos, sulistas, gente só centro, do litoral ou do interior, com todos os matizes imagináveis de cor e fala, é a primeira comunidade realmente nacional que se constituiu entre nós. É certamente a mais bela.;
;Sei, vi e vivi pouco em Brasília, mas a gente adivinha. (;) Então comecei a pensar como Brasília é uma cidade com vocação para a lucidez diurna que se tornou impraticável no Rio ou em São Paulo. O mergulho acordado na noite em busca de serenidade não será, em Brasília, imprescindível. Aqui será possível, melhor do que em qualquer outra cidade, ver claro durante o dia é, à noite, dormir.
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Uma situação colonial?
Paulo Emílio, 541 páginas/Ed. Cia das Letras